CANÇÃO DA CHUVA

Esse 2020 está sendo um ano desajeitado, descontrolado, distinto. Uma orquestra desafinada, sem ritmo, sem um regente que a coordene com desenvoltura em cada nota. Por exemplo, as andanças de dona Chuva por diferentes e variados palcos geralmente tem sido à “voz” de extrema exaltação, retumbando os sons raivosos da natureza. Talvez seja realmente um sentimento de ira frente às ações humanas que cada dia lhe arrancam pedaços.

A dona Chuva é uma companheira cativa e também serelepe, musicista dos extensos cenários celestes. É um talento musical inconfundível, digna das mais lindas canções do planeta e merece com todas as letras uma indicação ao Grammy. Conheço muito bem toda sua equipe musical, pois sou um fã muito fanático por seus bailes diurnos, noturnos, seguindo por madrugada inteira. O instrumento musical dessa sinfonia dos céus que me faz os ouvidos repuxarem de alegria é a telha de zinco. Como pode a melodia da dona Chuva ressoar tão bem sobre esse objeto metálico em perfeita sincronia com as gotículas de água? Geralmente, os estilos musicais tocados na presença quase unânime desse instrumento iniciam de um jeito desgovernado e logo ganham força, sendo impetuosos de uma forma unicamente extraordinária. Após esse começo fulgurante outros instrumentos entram em cena, como as calhas que despejam as frias águas do céu, o próprio solo encharcado soluçando pelo embate das gotas e a folhagem que se estende nas alturas das árvores respingando lentamente as águas residuais da chuva. É uma orquestra a nível de Mozart e Tchaikovski.

Pelas ruas, avenidas e vielas, quando estou com meu guarda-chuva em plena ação, aquele tecido sustentado por uma fraca estrutura de aço também desempenha uma cantiga de paz aos meus ouvidos. De vez em quando me acontece de esquecer da vida real, da urbe e dos pedestres que também perambulam por ali e, desatento, dou uns esbarrões em fulano e sicrano. Peço as devidas desculpas e sigo novamente para meu MP3 da natureza.

Após me tornar perito na canção da chuva já consigo dividir a orquestra em instrumentos metálicos, furados, têxteis, edáficos, cerâmicos, rochosos e foliares. A disposição é aleatória e nessa aleatoriedade a dona Chuva é mestra em harmonizar todo arranjo musical e conduzir na simplicidade essa orquestra viva que temos por ano inteiro de forma gratuita para apaziguar a alma. Deixo aqui apenas uma mensagem para que ela reveja esse estilo mais radical que ela adotara recentemente, não sei se ela andou brigando com alguns de seus músicos ou se sua raiva é por ter rompido relacionamento com algum guru do céu.