Casos de Família - Os Pereira

Eis aí os Pereira, irmãos do meu pai, filhos de Alexandre Pereira Neto e Isabel Pereira, ela natural de Abaeté. O nome da família, pelo lado paterno, deveria ser Pereira da Fonseca, mas vá lá você entender os critérios do registro civil daquele tempo? Já começava pelo vovô, que deveria chamar-se Alexandre Pereira da Fonseca Neto, mas ficou só com o Neto sem o Fonseca. Dos filhos, apenas meu pai conservou o Fonseca. Era Ubaldino Pereira da Fonseca.

Pois esses Pereira, a maioria era muito calada, mas sempre espirituosos e cheios de repentes humorísticos surpreendentes. Vou falar dos tios William, Eugênia, João Jacques, Fausto, Tito Lívio, Laura e de meu pai, Ubaldino, que todos tratavam por Dininho.

Foram criados no bairro do São Francisco, em Pitangui, do qual vou falar em outra crônica. É um bairro antigo, com muita história e concentra a maior parte das raízes de nossa família.

WILLIAM STEAD

Meu tio William, o mais velho dos homens, não conheci tanto, porque se mudou bem cedo de Pitangui para trabalhar num banco. Nessas andanças, mudou-se para Rio Verde, em Goiás, e construiu família ao se casar com a tia Ivanir. Os filhos são Alex Ivan, Ivana, William Filho e Nara. Nas vezes que conversamos, demonstrou conhecimento, ponderação e o mesmo senso de humor dos irmãos. Tio William tinha, como diz minha irmã Kátia, o porte de ator de cinema. Acrescento: também de um lorde pelo tom de voz e pela calma ao falar. Para completar essa impressão, seu segundo nome era Stead, também inglês, provavelmente inspirado em algumas das leituras do vovô Alexandre. Até hoje, andando por Pitangui, encontro gente que o conheceu. Há algumas fotos dele no livro “De gol em gol”, de Marcos Antônio de Faria, o “Barrica”, que conta a história do futebol em Pitangui. Dizem que era muito bom de bola, tendo chegado a treinar no Atlético Mineiro.

Uma vez, veio com a família a Pitangui e se hospedou na casa da vovó Isabel. Vovó morava no sobrado do Saul Luciano, ao lado da famosa venda do Tisnado (assunto para outra crônica), ambas as construções já demolidas. Eu devia ter uns 7 ou 8 anos, a recordação é de tudo como uma grande festa. Andávamos por Pitangui com os primos, mostrando-os a todos os parentes e conhecidos. Eram os primos de Goiás, para nós, naquele tempo, um lugar tão distante, do qual muitos nunca mais voltavam a visitar os parentes.

Foi nessa viagem que o Alex Ivan e o Marquinho, o caçula da tia Eugênia, entraram num clima meio estranho: os dois, conhecidos como “encapetados”, aprontaram de tudo em poucos dias. Marquinho enfiou um garfo na bochecha do Alex, talvez querendo ensiná-lo a comer ou sei lá o que. Será que eles se se lembram disso pra nos explicar o que realmente aconteceu? Na mesma ocasião, o Marquinho, que era o único dos filhos da tia Eugênia que nasceu em Belo Horizonte, comeu folha de comigo-ninguém-pode e empolou todinho. Crianças, crianças! Isso tudo na casa da vovó Isabel, no sobrado do Saul Luciano. Vovô Alexandre ficava no seu quartinho, ouvindo rádio, lendo ou fazendo suas esculturas de pedra-sabão e madeira, alheio às algazarras do mundo.

FAUSTO (FAUSTINO)

Foi meu padrinho de batismo ou de crisma. Seu verdadeiro nome era Faustino Pereira Neto, mas todos o conheciam por Fausto. Tenho poucas lembranças dele, mas todas muito boas. Uma delas é que adorava passarinhos, principalmente canarinhos. Tinha uma barbearia em frente à barbearia do tio Zezé, também meu padrinho, na atual Praça da Câmara. Portanto, eu tinha dois padrinhos e dois barbeiros numa mesma praça, embora ainda não tivesse barba. Podia, porém, escolher quem ia me fazer chorar com a água fria que esguichavam na cabeça da gente, antes de começar a cortar o cabelo.

Foi o tio Fausto ele quem me deu a primeira bola de futebol, bola “de capota”, coisa muito rara na época, lá pelo começo dos anos 50. Essa bola, porém, sumiu em poucos dias, quando a chutei no forro da casa da vovó Lóia e nunca mais a vi. Chorei muito, isso sim. Bom, assim se gravou a história em minha mente: todos ajudando a encontrar a tal bola, eu chorando desconsolado, e a bola nunca mais apareceu. E a bola era branca, disso me lembro. Ou penso que lembro.

DININHO E TITO LÍVIO

Tio Tito Lívio Pereira se mudou muito jovem de Pitangui para Itaúna para trabalhar no antigo Banco do Comércio, onde se aposentou. Em Itaúna se casou com a tia Maria e, como todo Pereira, fez centenas de amizades naquela incrível cidade mineira. Seus dois filhos, Edmo e Mônica, nasceram e moram em Itaúna.

Bom, falo dos dois juntos porque eram muito ligados. Além disso, já na minha vida adulta, era à casa do tio Tito aonde ia com papai. No encontro dos dois, se resumia toda a convivência dos Pereira da Fonseca: pouca conversa, um fino humor e muito respeito mútuo. Papai - não precisamos ir longe - sempre esteve envolvido com o teatro, tanto na comédia como no drama, seguindo a trilha do vovô Alexandre e do bisavô Faustino Otto. Era conhecido como caladão e ao mesmo tempo como um piadista repentino. Lembro-me que nas minhas viagens de férias, saíamos por todos os restaurantes de beira de rio e de estrada na região de Pitangui, Itaúna, Maravilhas, Onça, Nova Serrana, Pará de Minas, Divinópolis e o que lhe apetecesse. No entanto, sua primeira pergunta era:

- Que dia vamos à casa do Tito?

Lembro-me do momento em que se encontravam, do tom de voz e do sorriso gostoso do tio Tito quando chegávamos:

- Oi, Dininho, bão?

- Bão, e ocê? E a Maria e os minino?

- E lá em Pitangui? A Terezinha... a turma?

Em casa de muita gente, como na casa do meu pai, tinha até mais conversa. Mas na casa dele, nos últimos anos, eram só ele e a tia Maria, os filhos já ocupados com família e trabalho. Nessas visitas, havia uma rotina. Tinha o cafezinho e a conversa longa, com poucas palavras, Dininho pitando, Tito sorrindo e olhando pro nada. Trocavam meia dúzia de palavras em uma hora de “conversa”. Depois disso, papai já dizia pra mim ou para o grande amigo, Dirceuzinho, filho do Dirceu Xavier, que passou a ser também seu motorista eventual:

- Vamo puxá o carro?

Depois de sair da casa do Tito, ainda passava numa padaria - era seu costume levar pão de outra cidade para casa - e pegávamos o caminho pra Pitangui.

Nessas conversas, sempre alguma piada ou um trocadilho apareciam, provocados por um acontecimento passado, às vezes só do conhecimento dos dois. Eu gostava muito do tio Tito, era meu pai mais novo, como dizia uma moça casada com um primo, ao ver uma foto do tio Tito:

- Oh, é o tio Dininho mais novo!

LAURA

Era minha madrinha de batismo. Tinha orgulho disso. Gostava de cantar e conversar, nesse ponto um pouco diferente de seus irmãos. Tinha um tom de voz muito alto, era super afinada, super amorosa, incrivelmente engraçada, levava tudo na esportiva. Aliás, esporte era com ela mesma. Acompanhava tudo, principalmente o futebol, em especial o Cruzeiro Esporte Clube. Imagino o que não estaria sofrendo hoje, ao ver seu time do coração como está. Era um divertimento a mais acompanhar um jogo do Cruzeiro ao lado dela: sofria, chorava, tinha taquicardia, sorria, pulava, mexia com os filhos atleticanos, defendia o time azul, era uma festa, explodia num gol favorável, murchava num gol do adversário. Espetáculo à parte.

No lado musical, sabia tudo da Jovem Guarda e de valsas e boleros brasileiros e estrangeiros antigos. Tenho gravada uma interpretação dela, junto com minha mãe, da música “Oh meu imenso amor”, de Roberto Carlos. Gostava muito do show de calouros do Bolinha, que lhe tomava horas aos sábados, razão da implicância do tio Nô com o simpático animador de programa de televisão. Lembro-me dele resmungando entre dentes:

-Bulinha, Bulinha...

EUGÊNIA

Tia Eugênia me adotou - que saudade! - quando fui estudar e trabalhar em Belo Horizonte. Que fantástica pessoa! Morei um ano e meio em sua casa, entre 1969 e 70. Ao lado dela, em frente à televisão e do Tio Jésus e os primos João, Jésus (Zinho), Maria Eugênia e Marquinho, ainda moradores da casa paterna, viajei à Lua pela primeira vez e fui tricampeão mundial de futebol. Tia Eugênia foi a mãe substituta de um caipirinha tímido a desbravar a capital mineira. Depois de mudar para as consecutivas repúblicas de estudantes, continuei visitando-a em qualquer folga da vida dura e dupla de universitário e bancário daquele início de jornada de adulto. Suas conversas ultrapassavam os temas banais e iam, desde a história familiar dos Pereira da Fonseca e dos Bahia, nossos parentes, ao mundo político e social de seu tempo em Pitangui, onde nasceu e teve os filhos mais velhos. Era também muito engraçada, muito bom humor, até mesmo com suas macacoas, quando mais velha.

Casada com o tio Jésus, além dos filhos mais novos citados acima, teve ainda Vera, José Maria, Olga e Maria José.

JOÃO JACQUES

Tio João Jacques também era caladão. Tinha um hobby: fazia plantas de casa, trabalho próprio para pessoas com seu temperamento. Projetou duas casas, uma ao lado da outra, na praça da Igreja de São Francisco, que ainda estão de pé. Morou nas duas. Vendeu-as quando se mudou para Luz, lugar onde também deixou grandes amizades.

Casou-se com a tia Nilva, com quem teve os filhos Fausto, Liliane, Nilvane, Jacques, Geraldo,, Cleuler e Elaine.

Apesar do temperamento tranquilo da idade adulta, quando criança, sua fama era de bom de briga e todo mundo de sua idade respeitava o “Canarinho”, seu apelido em razão do cabelo ruivo. Durante muitos anos teve o Bar Elite em Pitangui, na atual Praça da Câmarra, até hoje local de referência de muitos amigos da minha faixa de idade. Era o local de reunião de jogadores do Pitangui Esporte Clube, do qual meu tio sempre foi torcedor e jogador.

Eu gostava de seu humor contido, inesperado e demolidor. A visita a sua casa, já viúvo, em Contagem, era uma obrigação e um prazer todas as vezes que eu vinha a Minas. De certa feita, num período em que foi morar na casa do papai em Pitangui, saímos de carro pra dar um giro por Conceição do Pará, Velho da Taipa, Usina, Cardosos, Santuário... Papai costumava convidar o Robson, sobrinho de minha mãe, porque aí ia ter piada e risada o tempo todo. Tio João Jacques acompanhava nossas brincadeiras, nossa cantoria, o Robson cantando Beatles com perfeição, papai apenas dirigindo, o tio só com um sorriso, intervindo algumas vezes com uma observação ou trocadilho inteligente. Nessa viagem em especial, paramos em muitos bares do caminho, pegávamos latinha de cerveja e ele uma pinguinha, que não lhe alterava de maneira alguma o humor e o costume de ouvir mais do que falar.

Nesse dia escutei a melhor de todas do tio João Jacques, pelo inesperado e rapidez da resposta. Perguntado por que não se casava, apesar dos muitos anos de viuvez, retrucou, na lata:

- Casar nessa idade... pra que? Pra domir com a mão no canteiro de marcela?

William Santiago
Enviado por William Santiago em 10/05/2020
Reeditado em 10/05/2020
Código do texto: T6942969
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