A Hora em Que a Tristeza Vem

Naquela manhã, quando o vento frio do segundo dia de inverno passou pelos fios ralos de cabelos dela, ela sentiu que seria um dia diferente. Não costumava reparar em detalhes pequenos. Não costumava a admirar detalhes do medíocre mundo ao seu redor. Não costumava a fazer qualquer coisa que fosse fora de sua rotina. Do seu trabalho. Só fazia o que tinha que fazer. Sem descanso. Sem saber fazer outra coisa que não aquilo. Buscar.

Naquela manhã, ela consultou seus superiores e pediu um tempinho para ela. Ninguém entendeu ela, afinal, depois de anos trabalhando naquele setor, anos de dedicação, sempre sabendo o que fazer inclusive tomando decisões difíceis, mas que seriam justificadas mesmo passando por cima de ordens, mesmo assim, ela nunca pedira um tempo, ou férias, ou folga. Ela vivia para aquilo. E fazia seu trabalho muito bem.

Mas naquele dia, naquela manhã atípica qual ela sentiu o vento, ela também sentiu que as coisas estavam estranhas no mundo todo. Estava cansada, mesmo sabendo que não podia se cansar. Estava pensativa, observando aquelas pessoas andando de lá para cá, acordando cedo, chorando antes de sair de casa, muitas nem sabiam que não voltariam para seus entes... Ela observava. E o vento novamente passou assoviando por suas orelhas ressecadas. Andou por ruas, parques e becos, sorriu como nunca antes ao ver dois cachorros de rua brincando sozinhos sobre uma caixa velha de papelão. Passeou invisível por todos, parecia conhecer cada um, e ali, em meio A FEBRE que desolava o mundo, tornando-o um lugar mais vazio, com as pessoas presas em casa, com medo de sair e contrair o temível vírus. Ela sentiu que chegara ao seu limite.

Naquela manhã, já quase a tarde, ela parou diante de um hospital. Teria que estar ali de qualquer modo para trabalhar e ver mais pessoas se despedindo de seus corpos e indo para seus próximos destinos no universo. O movimento intenso, as pessoas com máscaras, os enfermeiros e médicos desesperados em meio ao caos, pacientes sofrendo, familiares gritando implorando ou ordenando por ajuda pareciam ecoar pela sua alma já secular. Não conseguia entrar no hospital. Era como se seus pés cadavéricos que mal encostavam no chão, estivessem presos por alguma força sobrenatural. Mas ela se deu conta que ali, ela era a força sobrenatural, e aquilo que sentia, era algo que nunca havia sentido antes. Ela estava triste. E até se ousou dizer que estava sentindo medo. Nesse momento. A tristeza de ver aquilo foi maior que todas as suas delegações.

Ali parada ficou por horas. Observando e entendendo as pessoas. Na sua cabeça, ela apenas cumpria ordens. Apenas chegava perto daqueles que estavam prontos para partir, e assim, lhes “presenteava” com seu sopro da paz e eternidade. Enquanto ela ali esteve imóvel, parada, olhando e escutando dentro de si, que antes acreditava ser vazio, ao som de um líder político falando asneiras sobre A FEBRE, pessoas não morreram. A Febre continuava, mas incrivelmente, não havia mortes. Ela então sentiu a brisa novamente. Seus olhos fundos e escuros, quase que buracos de vazios se sentiram pesar. Ela sentiu um sopro. E aos poucos, as pessoas ao seu redor sumiram, porém, ela sentiu uma paz que em séculos de serviço nunca havia sentido.

A Febre então continuou na manhã seguinte. Com mortes pouco numerosas. Mas continuou.

fim

#Fiqueemcasa #Quarentena

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 07/05/2020
Código do texto: T6940083
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