A gênese da frieza

Tão antiga quanto a humanidade é a desumanidade. Desta terra maravilhosa em que se multiplicam os braços que socorrem os oprimidos, ecoam também as vozes que ridicularizam a solidariedade, a tristeza e a própria morte. Nada é novo, mudaram as cortinas e os artistas, a peça encenada se repete com linguagem atual.

Muitas vozes se levantaram contra os abolicionistas. Acabar com a escravidão seria prejudicial à economia - o que também causa fome, perrengues e morte - diriam utilitaristas racionais embasados em Bentham. Campos de extermínio, eufemisticamente designados como campos de "concentração", terminologia que hoje em dia só ignorantes ainda usam, foram tolerados e em grande parte aceitos na Alemanha hitlerista. Não foi necessário àquele "governo" grande empenho para enfiar essa sistemática goela abaixo de um povo reticente ou desconfiado. Havia, como sempre há, argumentos lógicos, racionais e convenientes encampados por suficientes apoiadores para levar ao limite o fundo do poço da história humana.

Nem só pelo medo se impôs a inquisição, houve adeptos e razões. Por absurda que fosse a ideia de torturar e matar uma pessoa para "salvar sua alma", foi aquele um conceito dominante por séculos. Aqui, guardadas as proporções e peculiaridades, ouve-se frequentemente, em conversas de botequim, "a ditadura só causou problemas aos baderneiros". Gente tosca, com esses pensamentos, é comum à nossa volta. Conversa de bar, também em sua versão Twitter, é geralmente marcada por bravatas e cruezas socialmente aceitas, como piadas de mau-gosto ou violências verbais "sem maiores consequências". O anormal é que estejam no comando da nação pessoas cujo conteúdo não se diferencia significativamente de frívolas conversas de bar.

E quando aqueles que deveriam dar o exemplo de postura e humanidade são justamente os porta-vozes do descaso com a vida, animam-se muitos em sair de seus casulos de mediocridade para apoiá-los, de algum modo sendo notados, fazendo parte da história (como fizeram os inquisidores, os escravocratas, os nazistas, os terroristas ou Mark Chapman...)

A desumanidade está aí, por toda parte, não se oculta. Os desumanos são orgulhosos de suas barbaridades e façanhas. Para que se expanda, basta aos indignados que nada digam.