Casos de Família - Tio Nô e a Escola da Vida
Antes de mais nada, um pequeno prelúdio: não são os gramáticos que dão vida às línguas; ao contrário, se pudessem, embalsamavam os idiomas e os punham nos museus. Toda a ciência armazenada na Sociologia, Engenharia, Filosofia, Política etecétera, não passa de manuais de instrução compilando a sabedoria popular. Feito isso, vou falar de Raimundo Moreira, o tio Nô. Ele era o marido de minha madrinha, tia Laura, irmã do meu pai. Um figuraço!
Nos meus tempos de criança, tio Nô era meu ídolo. Estava sempre alegre e levava a gente para passear de carro ou de motocicleta. E não era dessas motocas com motor de liquidificador de hoje: eram motocicletas grandes, para nós eram monstros de ferro e aço reluzindo ao sol. Quando mais velho, já aposentado, tornou-se muito teimoso e isso era sinônimo de muita piada, principalmente com relação a sua mania de consertar carros velhos e fazer catiras e gambiarras. As línguas ferinas dos sobrinhos e dos próprios filhos logo o apelidaram de MacGyver. Seu herdeiro nesse campo seria o "Lita", William Moreira, meu xará.
Ainda no plano das recordações infantis, lembro-me dele jogando no gol em Pitangui. Apesar de baixinho, todos que o viram jogar diziam que era um goleiro muito bom e tinha seu fã clube. No excelente livro "De gol em gol", de Marcos Antônio de Faria, que conta a história do futebol pitanguiense, há várias fotos do tio Nô (e de outros parentes também) com a camisa de goleiro de vários clubes da cidade.
Motorista do DENERu, sigla para Departamento Nacional de Endemias Rurais, órgão do governo federal, viajava por toda Minas Gerais com os chefes, geralmente médicos. Nessas viagens, formou-se na escola da vida. Essa experiência lhe dava a certeza de responder a quase todas as perguntas de imediato, sem ficar raciocinando muito. A vida já lhe tinha dado as respostas de cor.
Com muitos filhos (Isabel Cristina, Ivanir, Ilza, Ives, Iara, Ilma, Ione, João Alexandre, “Lita”, Cássio e Ivana), lutava sempre com dificuldades. As sucessivas mudanças de cidade, na tentativa de conciliar residência da família e sede do trabalho, prejudicaram muito a vida escolar dos filhos. Mas era o que tinha.
Nos dias de folga das constantes viagens e longas ausências, passava com a família e, como não era de ferro, gostava de tomar umas caipirinhas para relaxar. Quando as filhas mais velhas tornaram-se adolescentes, tio Nô passou a querer controlá-las e fiscalizava impiedosamente seus admiradores e pretendentes.Sob o efeito de uns “birinaites”, para mostrar que “tava de olho”, amolava um facão no asfalto da rua e arrancava faíscas como que para avisar que ali tinha respeito. E era preciso, pois as filhas se destacavam: eram bonitas, cantavam, dançavam e faziam teatrinhos desde pequenas, com certeza herança do avô materno, Alexandre Pereira Neto.
Confesso que tive uma pequena mágoa dele. Certa feita, fui passar uns dias com meu pai na casa dele em Itaúna, cidade onde tio Nô morou várias vezes. Sem que eu percebesse, chamou meu pai pra dar uma volta de motocicleta. Eu, talvez com uns sete anos, só me dei conta quando eles já estavam acelerando a moto. Corri atrás até cansar, chorando desconsoladamente e gritando pra me levarem também. Esse dia não teve conversa: fiquei pra trás, sobrando igual jiló na janta. Eu devia ser um carrapato, imagino que não dava sossego nem pro meu pai respirar.
Curti mesmo o tio Nô quando era mais velho, na década de 90, ele já aposentado e morando definitivamente em Pitangui, na antiga Rua da Paciência, pertinho da capela do Bom Jesus. Nessa época, aproveitei para escutar as histórias das inúmeras viagens pelo interior mineiro, principalmente do tempo em que morou em Juiz de Fora, e aprendi muito com a sua experiência. O local dessas conversas, quase sempre, era a barbearia/vendinha do meu tio Zezé, o Zé Vovô. Entre nossas brincadeiras, chamávamos um ao outro de “federal”, porque ambos éramos funcionários públicos federais.
Um dia, meu pai veio me contar que estava muito preocupado, porque o governo de Fernando Henrique Cardoso tinha lançado o Programa de Demissão Voluntária. Muita gente – sempre existem os terroristas - dizia que era só o começo para demitir muito funcionário público federal. Em outras palavras, ninguém era “imexível”, todo mundo estava no bico do corvo. Ao comentar isso com Tio Nô e pedir sua opinião, meu pai recebeu a resposta que demonstrava essa cultura de vida, síntese de conhecimentos de Sociologia, Ciência Política, Linguística, História e do próprio entorno do funcionalismo público:
- Não preocupa, Dininho, ele não perde o emprego: ele tá no meio dos “sáibios”.