Casos de família - A casa da tia Lourdes
“... Quando tudo pra nós for cinzas e o vento levar...”
Pois o vento levou. Aqueles momentos de puro enlevo, tia Lourdes e tio Silviano, olhando-se com cumplicidade e cantando juntos com os filhos, já estão perdidos no tempo. Apesar de tudo, os Santiago Laje ainda adoram música, têm uma play list no Spotify e vieram atualizando a paixão que se concentrava em sua casa, na acolhedora residência da Quintino Bocaíuva, 270, em Anápolis, Goiás. Estou falando da fase de que participei, metade da década de 70 e começo de 80.
Quando me mudei de Pitangui para estudar e trabalhar em Belo Horizonte, sentia falta da vida do interior. Por isso, ia a Pitangui quase todas as sextas-feiras. Pegava ônibus, viajava 120 km, passava os fins de semana por lá e me alimentava emocionalmente. Revia os amigos e curtia a casinha de meus pais.
Depois, me mudei para Brasília. Aí era diferente, não dava pra seguir assim por dois motivos: tempo e dinheiro. Afinal, Brasília estava a cerca de 800 km de Pitangui. Eis que me vem à cabeça a ideia de trocar Pitangui por Anápolis e Belo Horizonte por Brasília. Começam aí meus fins de semana na casa da tia Lourdes, irmã de minha mãe, a saudosa Terezinha.
Anápolis está a mais ou menos 170 km de Brasília, mas ia dar certo. Não poderia ir todos os finais de semana, mas pelo menos uma vez por mês. Minha tia Lourdes sempre foi muito querida por toda a família, era uma referência distante, mas constante. Lembrem-se: naquele tempo, década de 70 e começo de 80, não havia celular, nem WhatsApp e telefonar, antes da existência do DDD, era uma aventura que podia durar até três dias para se concretizar.
Aliás, nesse tempo, durante as férias, fiz também a conexão de meus irmãos Antônio Carlos, Beto e Gérson com a família da tia Lourdes, além de levar várias vezes o amigo e parceiro musical, o Reinaldo. Ele, músico e compositor, ficava maravilhado com o coral da família – chamava-o Coral de Curiós – e entrava muitas vezes na folia, acabando por aprender muitas músicas do repertório dos Santiago Laje.
Existem muitas coisas de que poderia falar sobre essas viagens a Anápolis, como algumas comidas goianas que faziam lá – ai, aquele tucunaré assado no papel de alumínio! - mas vou me concentrar nos fins de semana com ela, tio Silviano e os primos.
A parte mais interessante era a cantoria. Meus primos e primas são muito afinados, os pais também eram. Eles tinham um verdadeiro coral informal em casa. Os mais velhos: Dirceu, o Maninho, no violão; Sílvio, "apelido" do Silviano Filho; Mila, a Maria Emília; e Bete, Maria Elizabete no vocal. Entravam também as primas mais novas: Silma, Silvana e Suzana, com a mesma afinação e entusiasmo. Bastava um toque de violão do Dirceu, esse nascido em Pitangui, para dispararem uma série de músicas prontas para a garganta privilegiada dessa gente.
Aliás, não podia deixar de ser: Mamãe e seus irmãos eram muito afinados. Em uma das viagens da família da tia Lourdes a Pitangui na minha infância, na década de 50, me deliciei com a descoberta daquele coro de vozes cantando a versão brasileira de “Che Pykasumi”, de Cecílio Valiente, guarânia paraguaia cantada originalmente em guarani e gravada dezenas de vezes em português com o título: Rancho Vazio.
A afinação da família não era nenhum segredo: Tio Benjamim Santiago, irmão do Vovô, tocava violino. Muitas vezes, em visita a sua casa, no sobrado do Padre Belchior, na rua do mesmo nome, me impressionava sua execução, de olhos fechados, mãos trêmulas buscando os acordes em sintonia com a própria alma. O sobrado em si já era impressionante, pois nele viveu o padre que, segundo a História, influenciou Dom Pedro a proclamar a independência do Brasil.
Vovô Zé (José Rodrigues Santiago) e Vó Lóia (Aurora Barbosa) também eram afinadíssimos. Encontrei Vovô muitas vezes junto ao fogão de lenha, cozinhando alguma coisa, enquanto cantava em tom agudíssimo o “A ti, flor do céu”, canção predileta também de minha avó. Os filhos saíram aos pais, todos afinados: Lourdes, Terezinha, Zequinha (José Antônio), Zezé (José Rodrigues Santiago Filho), e José Maria.
Nas últimas vezes, já neste século, sem a presença física dos meus tios e da Mila, que nos deixou em 1991, mas atados a suas lembranças, recordávamos tudo, entoando antigas e novas canções. “Araguaia”, hino ao célebre rio, foi uma das músicas que nós, os mineiros, aprendemos com os primos goianos e incluímos em nosso repertório. A inesquecível “Tema de Bárbara”, cuja autoria ainda não consegui descobrir, celebrizada por Moacir Franco, essa não podia faltar. Era a que mais me fazia lembrar tia Lourdes e tio Silviano, talvez pela letra. Lembrando as ausências, recordando os vários encontros e olhando pra dentro de nós, ficava clara a mensagem da versão brasileira da música: “,,, Quando tudo pra nós for cinzas e o vento levar...” Pois o vento levou. E se levou, porém, trouxe igualmente novos tempos e novos primos por todo Goiás e até tocantinenses, como os filhos do Sílviano.
(Foz do Iguaçu, abril/2020)