A GATINHA ALBINA

Polyanna - a caçula dos afetos aos olhares dos de duas patinhas - é uma princesa no andar, elegante, ladina. Chama a atenção de todos que topam com ela e seus trejeitos. Reina absoluta no território dos carinhos familiares. Aliás, na lúcida memória, no alvo rigor estético, é uma híbrida novidade biológica, uma ursinha em miniatura – sua cauda de pelos muito brancos, andeja na neve ou nos campos geados com suave andar, até mesmo quando escapole de casa feito um azougue. É tão doce o seu enigmático olhar, que os meus olhos tremeluzem à falta de óculos para olhar e ver mais além.

Os felinos irmãos propagam miados diferenciados, especialmente quando estão sequiosos de rua, de ambiente livre, de alimentos ou encantamentos graciosos. Os gatos saciam a sua fome doméstica com ração e água limpa. Eu beberico, quando expectante do mundo circundante, alguns generosos goles de vinho tinto, especialmente no inverno.

Os meus pulmões asmáticos, do outono até o fim da primavera, falam com eles em desconexo e arrevesado idioma: ressonamos guturais, especialmente à noite, num mútuo entendimento de sons. A voz andeja no mar de invernias e cava roucas palavras no peito de alvéolos oprimidos.

Nos caminhos do verão, a poética dos gatos compõe uma individuada seresta, aliada ao ar em movimento urdido pelo ventilador. Enquanto o suor lambe a minha pele, Polyanna acaricia os pelos com sua longa e áspera língua e me lança olhares humanamente dóceis, pejados de ternura e espantos, em que qualquer ruído repentino, de somenos, a transforma num rastilho de pólvora.

É nesta tímida hora que o estupor enigmático encontra a menina dos olhos minados de surpresas que baqueiam inopinadamente. E, num átimo, a dona da cena ronrona sementes de compassada calmaria, fingindo dormir.

E, sem mais nem menos, estranhamente, tudo parece sem vida. Em mim, o longo cálice de cabernet sauvignon, enquanto o sono não vem, gasta os neurônios baços tentando fixar a mística do alumbramento. E este persiste: há um alento promissor quando a poesia perpassa airosa aos meus olhos gastos.

– Do livro inédito A VERTENTE INSENSATA, 2017/20.

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