Inventário de uma vida (ou como poderia ter sido se fosse de outro jeito)
Desculpe, minha insensatez, disse a velha senhora para o moço do outro lado do balcão. Faz muito tempo que minha mocidade, outrora radiante e cheia de vida, cedeu lugar para essa inesperada vontade de não continuar. Não sei o que aconteceu, tampouco, em que momento isso se deu. Tem momentos que as coisas se dão sem que nos demos conta, tem acontecido comigo, sem que eu queira, me deparar com lembranças de quando era mocinha. É verdade que tive uma juventude cheia de aprendizado. Descobri nessa fase - e olha que nunca disse a ninguém - meu gosto por plantas. Por que ficaste surpreso quando disse que nunca disse isso a ninguém!? Oras, é porque, como venho de uma família voltada para as ciências jurídicas - meu pai se referia dessa forma ao Direito - fui educada, para não dizer, treinada, em seguir o mesmo caminho dos avôs e tios e tias e irmãos...Como podes ver, eu não tinha muita escapatória; já tinha nascido como o caminho e o destino traçados. E num estalo de dedos tudo se transforma como se a mudança estivesse ali, a espreita, como um leão preparando o ataque. Assim, meu filho, sem que eu me desse conta, sem que pudesse ter percebido, me tornei, como disse, num estado de dedos, essa pessoa que contrasta com o que um dia fui. Devo confessar que não me arrependo do caminho que escolhi. Por muitos anos fui reconhecida como uma autoridade em botânica, participei de expedições que percorreram nosso país e catalogamos muitas espécimes da flora e da fauna antes ignoradas, enfim, dei minha contribuição ao que hoje se conhece das nossas fauna e flora brasileira. Reconheço, não vou negar, que a vida nos conduz por caminhos que ignorávamos. Poderia eu imaginar o tanto de coisa que iria fazer? Saberia eu, de ante-mão, que eu seria e estaria no roll dos mais célebres cientistas botânicos do país? Enfim...Todavia, aqui estou, defronte você, tendo entre nós apenas esse balcão. Eu daqui sairei, você ficará e outros aqui entrarão. Mas o que terá sido esse breve instante senão, e apenas, o limiar de um tempo em que duas pessoas se encontraram e jamais saberão uma sobre a outra? Repito: desculpe minha insensatez, tudo não passou de um pequenino tempo. Boa tarde. A senhora despediu-se e sumiu na multidão apressada para pegar o ônibus que chegara na parada.