O Poeta Marginal
 
Na face do céu azul-anil,
em traços de aquarela,
num distante novembril,
nas cores da primavera...

Lacrimou o olhar juvenil,
com gosto amargo do sal,
de luto o país se cobriu,
nos tons do adeus final...

Foi-se o artista viril,
restou a obra atemporal,
que retratou o Brasil,
em sua poesia visceral.




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                                   Torquato Neto como ator em "Nosferato in Brazil"


POST SCRIPTUM

Poema dedicado à memória do mais importante poeta piauiense - Torquato Neto, falecido aos 28 anos, em 10 de novembro de 1972... no auge da sua criatividade de poeta, letrista, ator, roteirista, cineasta e produtor de cinema, jornalista, ativista e crítico cultural.

Sim, um dia após seu aniversário, a voz marcante da Tropicália (ao lado de Caetano Veloso), Torquato Neto resolveu partir, numa inusitada encenação dos versos dramáticos da sua antológica "PRA DIZER ADEUS", musicada por Edu Lobo e gravada por artistas da estirpe de... Elis Regina,  Sérgio Mendes, Zimbo Trio e Gilberto Gil:

"Adeus... vou pra não voltar... e onde quer qu'eu vá, sei que vou sozinho". O poema traduz muito da sua rica, complexa e conturbada personalidade.

Torquato Neto foi letrista de muitos companheiros tropicalistas: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Tom Zé, Edu Lobo, Roberto Menescal, Nonato Buzar... 

Após distanciamento (voluntário) dos tropicalistas baianos e do próprio movimento cultural, do qual foi fundador, porta voz e referência, Torquato Neto se tornou parceiro de personagens importantes em outras tribos:  Jards Macalé, Luiz Carlos Sá, Renato Piau, Feliciano Bezerra, Carlos Pinto, Edvaldo Nascimento, Paulo Diniz, Geraldo Vandré, Geraldo Azevedo, João Bosco, Fagner, Zeca Baleiro, Luiz Melodia, Sérgio Brito (Titãs), Fred Falcão e Carlos Galvão.

A história de vida de Torquato Neto é singularíssima. Precoce em tudo, sempre teve fixação por livros. Com onze anos, surpreendeu os pais pedindo a coleção completa de Shakespeare. Aos quatorze, devorou quase a obra inteira de Machado de Assis. Por essa ocasião, despertou a verve de poeta e escritor. 

 

E, completados dezessete, convenceu  os pais e deixou sua amada Teresina, indo estudar em Salvador. No colégio Marista, foi contemporâneo de Gilberto Gil. Em seguida, conheceu o resto da trupe baiana: Caetano, Gal, Betânia, Tom Zé e Capinam.

Alguns anos mais, mudou-se para o Rio de Janeiro - centro cultural efervecente do país, naquela ocasião. Lá, conheceu os poetas Augusto de Campos e Décio Pignatari, além do artista plástico Hélio Oiticica e do cineasta Ivan Cardoso. Com esses intelectuais, manteria um diálogo libertário e crítico sobre as "amarras" da cultura do Brasil, daqueles tempos.


Com Caetano, Gil e outros artistas, em terras brasilis, fundou o movimento cultural mais intelectualizado dos anos 60 - a estética Tropicália. E foi mais além: através de artigos polêmicos, também, defendeu outros movimentos vanguardistas importantes, surgidos na mesma década: a Poesia Concreta e o Cinema Marginal, dos cineastas Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Ivan Cardoso.

Pela versatilidade e competência em diversas expressões culturais,  Torquato foi um artista multimída, mesmo antes do surgimento da internet... genial em tudo o que se propôs a fazer, deixou um legado extraordinário para muitas gerações. Cinquenta anos depois de seu último suspiro, ainda é expressiva sua influência na cultura brasileira.


Ainda que tivesse toda essa genialidade, a poesia era sua manifestação predileta. Através dela, expressava seu inconformismo com a vida: "O Poeta é a mãe das armas" é um dos poemas mais viscerais do piauiense.

Mesmo doce e afável, ou muitas vezes divertido, Torquato Neto apresentava um quadro psicótico depressivo, agravado com o decorrer do tempo. Tornou-se alcoólatra; internado em diversas ocasiões no Rio de Janeiro e em Teresina. P
or quatro vezes, atentou contra a própria vida... até, finalmente, desaguar na fatídica madrugada de 10 de novembro de 1972.

Em homenagem a Torquato Neto e ao seu Heli Nunes (pai de Torquato), Caetano Veloso escreveu a icônica canção "Cajuína", página poética-musical mais sublime do álbum "Cinema Transcendental". Os contundentes e emotivos versos desnudam a visita de Caetano ao pai do poeta, em Teresina, anos após sua morte trágica.

Cedo demais, foi-se o "Anjo Torto da Tropicália", o poeta teresinense de versos intensos e viscerais, que transitou com igual talento e criatividade pelo cinema marginal, poesia concretista e jornalismo cultural do país... restou sua obra magnífica e atemporal.



                                             

 

         Torquato por Torquato

 

Aos nove anos, Torquato Neto se apresentou ao mundo da poesia:

"O meu nome é Torquato

O de meu pai é Heli

O da minha mãe Salomé

O resto ainda vem por aí."
 

 

Sobre ser poeta, certa feita, escreveu:

"Poesia. Acredite na poesia e viva. E viva ela. Morra por ela se você se liga, mas, por favor, não traia. O poeta que trai sua poesia é um infeliz completo e morto. Resista criatu
ra."



Sobre sua poesia, o poeta descreveu:
 

"Quando eu recito ou quando eu escrevo uma palavra, um mundo poluído explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte e fogo e morte (como napalm), espalham imprevisíveis significados ao redor de mim. [...] uma palavra é mais que uma palavra, além de uma cilada. Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma; qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam apenas uma espécie de caos no interior tenebroso da semântica. [...] Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema."
 

 

Sobre si mesmo, parodiando Carlos Drumond de Andrade, deixou os versos contundentes e primorosos de Let"s play that:

 

"quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let"s play that"

 

Sobre sua identidade com a poesia, como forma de inconformismo, eis o poema "O poeta é a mãe das armas":


O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral - 
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
Alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.
O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.
A poesia é o pai da ar
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira ////////// =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.a
r: em primeiríssimo, o lugar
poetemos pois.


 

Sobre sua relação com a morte, o poema "Cogito":
 


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BILHETE DE DESPEDIDA


"FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".
 

 

Thiago é filho do poeta. Tinha dois anos, no dia de sua partida.



 

 

Antônio NT
Enviado por Antônio NT em 02/03/2020
Reeditado em 14/11/2022
Código do texto: T6878421
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