A BEATA E O CANGACEIRO
A BEATA E O CANGACEIRO
*Rangel Alves da Costa
Quando Padre Gerôncio ficou sabendo da notícia, então só faltou endoidar. “Mas não pode, isso é coisa do outro mundo, não pode estar acontecendo uma coisa dessas na minha paróquia. Se for verdade, eu juro por Deus que hei de excomungar a beata Santinha...”. E disse mais, muito mais.
Tudo pela notícia logo espalhada pelos quatro cantos e para espanto de meio mundo de gente. Grande parte da população não queria acreditar de jeito nenhum que a beata Santinha tivesse alçado o cangaceiro Lampião ao mesmo posto das santidades. Não só santificou o cangaceiro como lhe deu altar.
Assim mesmo aconteceu. A velha beata cismou de colocar dentro do oratório uma imagem de barro de Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Capitão Lampião, e bem ao lado dos santos da igreja e de outros santos sertanejos. E para a santidade cangaceira se devotava com a mesma fé e profusão. Até havia criado uma reza própria para louvar o rei das caatingas: “Ladainha ao Cangaceiro Sagrado”.
Isso mesmo, se aumentar nem diminuir. Significa dizer que Lampião estava ao lado de São Jorge, São Pedro, Nossa Senhora das Virgens, Nossa Senhora Aparecida, Santa Edwiges, São Sebastião, bem como de Padre Cícero, Frei Damião e o Beato Pedro Batista, dentre outros. E até de um Jesus Cristo antigo e todo trabalhado em madeira de lei, verdadeira relíquia.
Quem deu a língua nos dentes, indo contar essa novidade medonha ao Padre Gerôncio, foi outra famosa beata, a conhecida Gerimunda Linguaruda. Só que dessa vez, a história contada ao padre era verdadeira, pois Santinha sequer escondia a devoção sentida pelo cangaceiro por ela mesmo santificado.
Assim que contou a história ao sacerdote, o homem quase teve um piripaqui na hora. Era de pele clara, logo avermelhou, para depois parecer um tição fagulhando de raiva. Lançou mão do vinho da missa e secou a garrafa em minutos. Andava de lado a outra, ora querendo levantar a batina ora puxando os cabelos. A beata Gerimunda chegava a delirar com tudo isso, principalmente quando o sacerdote fazia menção de levantar a batina.
Enfim, Padre Gerôncio chegou à conclusão que teria de convocar a beata Santinha para se explicar, em meio aos fiéis, a sua atitude desatinada e pecadora de levantar altar entre os santos para um cangaceiro. E ainda por cima um cangaceiro tido por muitos como a ferocidade maior nordestina, líder de um bando de facínoras desalmados e até acusado de desvirginar mocinhas indefesas e levantar criança para o alto e esperar a descida na ponta do punhal. Ah, sim, a desnaturada beata tinha que se explicar direitinho.
Assim que soube da convocação, ao invés de se preocupar com as explicações que teria que dar ante o sacerdote e todos, sob pena de ser até mesmo excomungada, Santinha o que fez foi se ajoelhar perante o oratório e, mirando bem a imagem de Lampião, começar a entoar seu “Ladainha ao Cangaceiro Sagrado”:
“Meu santo santificado, santo do meu sertão, pois todo mal é curado no punhal de Lampião. Homem que veio como guia para afastar a opressão, para combater a tirania do mundo em desolação, trazendo uma estrela na mão e na outra um mosquetão, como enviado dos céus, para ser nossa salvação. Livra de todo quebranto, Virgulino Capitão, afasta do mundo a maldade pela sua estrela em clarão. Meu santo santificado, santo do meu sertão, pois todo mal é curado no punhal de Lampião”.
Pelo jeito, a beata lampionista estava mais que preparada para ir defender sua devoção cangaceira perante a igreja. Uma verdadeira Inquisição Sertaneja e com grande possibilidade de lançar à fogueira uma mulher cujo pecado maior era acreditar no que achava melhor acreditar, fazendo de sua fé um jeito próprio de veneração. E assim, se achando pronta e preparada para o que desse viesse, colocou um chapéu cangaceiro e rumou até a igreja.
Ao colocar os pés perante a multidão de sertanejos curiosos e amedrontados pelo que pudesse acontecer, Santinha logo ouviu do Padre Gerôncio, aos gritos: “Entrar com chapéu cangaceiro no templo de Deus, nem pensar...”. Então a beata começou a falar ali mesmo, sem sequer dar tempo de o sacerdote começar a inquisição:
“Quem disse que sua batina de pouca vergonha, pois todo mundo sabe o que faz nos escondidos da sacristia, é mais importante que esse chapéu sertanejo? Quem disse que sua fé é maior que a minha? Agora, sobre eu ter Lampião no meu oratório, eu tenho apenas a dizer o seguinte. Diga um só santo que não foi injustiçado em vida. Se disser o nome de um eu tiro Lampião agora mesmo do oratório. Ou o senhor acha que lutar contra a opressão, combater o dragão do poder e confrontar uma violência maior que a cangaceira, é coisa pra qualquer um? A vida de Lampião foi de martírio ou apenas de beber vinha de missa em cálice de ouro? Diga seu padre!”.
E depois disso, sem sequer prestar atenção no desmaio do padre, deu meia volta e seguiu caminho. Voltando-se apenas para um último grito: “E amanhã vou voltar pra contar os milagres de Lampião!”.
Escritor
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