Cinema mudo

Era novamente o dia de pagamento da aposentadoria.
Fui até ao banco e, como todo mês, a fila estava enorme. Fiquei ali por cinquenta minutos talvez. Como sempre, meus olhos registravam as minúcias do movimento silencioso que me cercava. Uma senhora gesticulava freneticamente com o marido à minha frente. Ele de braços cruzados parecia concordar passivamente com o que ela dizia. Vez por outra ele alisava a barba e ajeitava o óculos sobre o nariz... pelo perfil é descendente de turco, árabe... Quem sabe persa, pensei. E aquela dona parecia brava com ele, ou seria com a morosidade da fila?
Em determinado momento ela olhou para os lados e pude ler em seus lábios algo como "filhos", ou seria "fila"? Mas ela se voltou para frente e lá se foi a minha oportunidade de compreender o assunto que tanto a inquietava. Fiquei alí me distraindo com aquele cinema mudo. Imaginava os possíveis problemas que a afligiam e quando eu pensava que podia, em mais alguns minutos, desvendar a história que a mulher esbaforida contava, a fila à minha frente foi chegando ao fim.
O atendente fez um sinal com a mão, proferindo algo que entendí como "- O próximo!" e era a vez daquele casal. Olhei atentamente para o funcionário do outro lado do balcão. Ele falava direcionando-se àquele senhor. Neste instante o marido sutilmente enfiou a mão ao bolso da calça e a levou ao ouvido esquerdo ajeitando seu aparelho auricular. Matei a charada! Ele ficara surdo como eu, só que tinha um aparelho... No bolso!!!
Retirava-o despistadamente quando a sua mulher começava a falar. Concluí. Então compreendí o que o poeta Sadi quis dizer em "É melhor ser surdo que ouvir palavras ocas!"
Cláudia Machado
Enviado por Cláudia Machado em 15/02/2020
Reeditado em 10/03/2020
Código do texto: T6867057
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