O homem do rol
- As pessoas são infelizes porque tem consciência da própria morte...
A igreja proclama no alto-falante o falecimento de J... Apolônio N..., o féretro sairá do velório municipal São Francisco de Assis para o cemitério local às quinze horas do dia tal do ano de 2018...
Nas minúsculas e esquecidas cidades interioranas de Minas Gerais, os anúncios de morte das pessoas são acontecimentos para os ouvidos e curiosidades mórbidas dos cidadãos. Todos querem saber quem morreu, onde foi, como ocorreu, parente de quem, essas perguntas muito importantes... Um horror necessário que todos se acostumaram. Há mais de um século é assim em Ribeirão Vermelho, o menor município dessa terra do meio do Brasil. Há um prazer cínico e mórbido por parte dos viventes, pois antes ele do que eu, riam... As pessoas correm para os quintais, para as calçadas, para o exterior das casas e sobrados para ouvirem a voz difusa e de péssima dicção e prosódia do locutor eventual. Som abafado e oco. As pessoas que moram nos arredores da praça central, perto da Matriz, saem até de suas moradas momentâneas e se sentam nos bancos frágeis de madeira para decifrarem com prazer e precisão o nome do defunto da vez:
- Não entendi nada do que falaram! Quem morreu? Foi aqui? – A música que toca antes do anúncio dá o ensejo se foi morte na cidade ou se havia sido em outro lugar. Umas músicas bizarras, tristonhas como um dia de finados realmente ainda carece.
- Preciso saber quem morreu! – pensou alto o homem do rol.
Ah! o homem do rol: uma singular figura humana de nossa cidade. Figura conhecida, um tanto apagada e gasta, diga-se cá entre nós. Tinha o salutar, útil e curioso hábito de anotar, há muitas décadas, os nomes de cada morto anunciado na igreja. Anotava num caderninho de capa dura, com arabescos bem feitos nos cantos superiores e inferiores, os nomes completos e as datas de falecimento de cada homem ou mulher dessa pacata terra de Nossa Senhora da Guia. Realmente uma atitude muito digna e respeitosa.
Sua lista já estava com mais de tantos mil cidadãos que, com certeza, se sentiriam muito prestigiados por estarem em um rol de pessoas conterrâneas, talvez até amigas aqui no reino infeliz, umbralino e estranho dos vivos. O homem do rol era meticuloso, atento, prestimoso e emocionado na relação dos defuntos. Um primor de catálogo: no dia 13 de dezembro de 2006, falece na cidade de tal a senhora tal de memória tal e trabalhos dignos em nossa cidade... Assim por adiante. Requintes de detalhes, exéquias e considerações altamente pessoais. No rol do homem do rol (nada mais honroso que essa alcunha) até seus parentes eram acrescentados, pois nesses momentos de dor e perda não havia espaço e temperamentos frágeis para faltar com tão cordata atividade ou atitude de perpétua lembrança. O caderno está grosso, a caligrafia mudou com o tempo, pois as letras estão um pouco tremidas pelo avançar da idade, afinal, pois a vida desgasta o homem e faz com que as coisas magnânimas sejam fragilizadas. Não foi diferente com o homem do rol.
A propósito: hoje, enquanto escrevo este texto de rodapé na literatura brasileira, soube da morte repentina (morreu de tanto viver?) do homem do rol, aqui mesmo em nossa cidade aprazível de Ribeirão Vermelho. Ninguém se lembrou de completar seu caderninho.