FIO ESGARÇADO
Algumas paixões bagunçam tanto a alma. Descabelam os sentimentos. Desfivelam desejos. São paixões órfãs, de voz decapitada, de sentido ambíguo. Paixões com certo tempero de loucura surrada, de fantasia abrupta, de fôlego esquartejado franco e manco. Seus dedos agrestes escorrem pelos vãos do querer traído. Nessas paixões alheias, secretas, só sobressaem nervuras do medo, do não-querer. do solitário ir e nunca vir. Paixões esgarçadas, engraçadas, pelos becos do tempo, nesses sótãos atrozes do desmame. Seus véus rasgados choram pelos puídos peitos castigados pelo furor abrupto daquele amor enferrujado que ainda perdura,que ainda vibra e berra. Paixão fugaz, atônita, de cheiro zumbi, com ossos retintos e mendigos. Paixões que tenho por ti, por mim, por tudo. Nelas refogo meus quebrantos mais aflitos, um tanto ocos, um tanto opacos, um tanto grávidos. Paixões acendidas pela correnteza dourada desse gozo engasgado, surrado, suado, sovado. Então, rendido, vou à cata desse sono fugido, chamando os deuses que refastelam o que sou, o que vou, o que sei lá. Daí, enervado, talvez bandido, volto à luta destemperado, destituído das minhas honestas razões. Meio morto, meio chutado, meio abdicado, revoo todos passos sem capataz, sem destino, sem lacre. Agora, nessa paixão indagada, impura, empunho meus castiçais sarados da dor do adeus, da dor de Deus. Vamos arrebanhar grunhidos escusos, vamos dilacerar pescoços estridentes, vamos ressabiar essa fé rouca, atroz, alheia em mim e da gente. Não há mais tempo para fiados de paixão. Agora é pra valer, s hora é essa, meio imunda, mas é essa. Tiro meus gatilhos rebarbados e faço valer cada suor abençoado da gente, amor. Faço reinar cada fio esgarçado desse caminhar atônito, alforriado e faminto. Boa noite pra quem fulgurou meu álibi, minha redenção, minha solidão. Boa noite pra quem aplaudiu os restos enrugados dessa vida tosca, etérea, escusa, espevitada. Boa noite pra quem foi cúmplice do meu legado mais desterrado e vil, mais malandro e dócil. Boa noite para quem esvoaçou essa ópera encardida e maluca que teimamos em chamar de inspiração, de ovação. Mas que, no fundo, no findo, não passa de desenfreado torpor maldito e cruel do que tenho mais encrustado dentro de mim e que sempre escondi, sempre dissimulei, sempre roubei sempre chorei. Boa noite.