O Manifesto

Por Everaldo Soares

E aconteceu que naquela noite os telejornais anunciaram a criação de um novo partido, diziam que os antigos fracassaram lamentavelmente. Gregório, político bom e justo, protestou:

- A cidade não precisa de outro partido, precisa de ver fazer valer as leis e promessas feitas pelos partidos vigentes, porque a lei não se aplica contra o descaso daqueles que fazem as leis, eles vivem à custa de contribuintes estarrecidos, pobres e oprimidos.

Os discursos se repetiam, como se algum dia cessassem de se repetir, alguns de seus aliados mudaram de lado, outros ficaram divididos. O partido se fortaleceu, Gregório começou a olhar para ele como se olhasse uma jovem mulher. Por fim, ele próprio, ficou atraído pelo novo partido.

E eu ouvia Willy, o apresentador lobo enquanto a chuva varria o telhado da velha casa, e o vento sacudia as antenas de vhf.

Enquanto falava, sua imagem tremeluzia como um vulto, sua voz parecia um sussurro fantasmagórico. Então me lembrei do poeta que escreveu: "há de ter fé na palavra como um cão olha seu dono", e Willy estava diante de uma cidade que olhava para ele, toda vez que se punha a falar.

Durante a noite, eu conversei sozinho, depois ordenei minha voz que calasse... sobreveio o silêncio... e a palavra quebrou o silêncio outra vez. E eu falei aquela noite inteira... estava sóbrio.

Noutro dia, a cidade amanheceu agitada sobre os arranha céus, condomínios, campos e favelas. As pessoas iam e vinham pensativas, ninguém sabia em quem mais confiar.

- Acho que não sei em quem mais acreditar - relatou-me um morador da vila, desempregado havia quatro anos. Depois saiu andando, aborrecido, melancólico, e conversava sozinho. Disseram mais tarde que tentou morrer.

Mas o que se havia de fazer! As pessoas estavam desiludidas e enfraquecidas, talvez fosse melhor morrer.

Sobreveio a noite, e eu rezava todas as noites antes de dormir. Porque era bom dormir, para não ouvir os murmúrios da cidade.

Certa tarde cheguei em casa, eu me achava diante do espelho da sala. Pensava sobre os problemas que afligiam as pessoas, me lembrei do mendigo deitado na calçada perto dali, mais adiante outro mendigo... e mais outro. Escutei Willy, o lobo articulador, falando na Tevê:

- Nos últimos anos, surgiu uma nova classe, e o índice de pobreza caiu significativamente. - Mas eu via miseráveis por toda parte.

Um dia Willy reportava com falsa serenidade, num dos cantos sombrios da velha cidade:

- Um garoto de dez anos estava a disposição do crime e morreu por quase nada, não tinha pai nem mãe. A morte será como uma mãe para ele agora. - E fingiu compadecer-se do menino.

Depois eu ouvi uma voz incomum, vinha do meu subconsciente, e dizia: a Terra, onde habita o homem, é um lugar muito estranho.

Então eu disse: estou pronto para descer pelo poço, ninguém vai sentir minha falta. A voz continuou: a interação mutua entre os seres humanos está enfraquecida.

Eu pensei que estava enlouquecendo. Novamente sobreveio o silêncio.

Numa noite tranquila, eu caminhava pela vila, quando me deparei com um movimento luterano. De longe, uma voz conhecida proferia o seu manifesto...

- O diabo esbarrou o pé nesta cidade senhores, - dizia o reverendo Josefo - e o pecado do demônio não se conta com o dedo das mãos. - Concluiu.

A platéia escutava com avidez e eu acompanhava Josefo de olhos e ouvidos.

- A corrupção corre como sangue venoso no coração desta cidade, penso que ela está infartando. - Depois advertiu:

- Quando a ignorância é a dona do baile, ela dança com todos. "Sejamos astutos como as serpentes".

Na manhã seguinte, deu início ao último debate entre os partidos antes das eleições. A imprensa local convidou Willy como moderador do discurso.

Willy provocou um dos partidos quando esbarrou num assunto polêmico: insinuou que alguns de seus partidários apoiavam a 'reserva de mercado' no município, desviando o debate de seus propósitos, daquilo que o discurso deveria ser. A opinião pública ficou confusa.

Falsas acusações extrapolaram o limite de paciência de membros de um dos partidos. O debate inflamou-se com palavrões, alguns políticos acusaram Willy de ser um militante de esquerda. A opinião pública ficou ainda mais confusa, era

bem verdade que para muitos o lado era o que menos importava. Nos dias que se seguiram, vieram as eleições, e eu lembro muito daquele dia. As pessoas seguiram com suas vidas, queixosas, lamentando e praguejando. E tudo se repetiu... como se algum dia cessasse de se repetir.

everaldo.uni@gmail.com