Desgarrado de Si

 
Histórias há - as que mais amedrontam são do além; As histórias da vida de cada dia são apenas sombreiras do tempo que passou. Sou homem feito e pronto para enfrentá-las.

Sou homem também, e vejam só, fora-da-lei. Meu espírito se desgarrou e voou pra longe lá na pequena cidade de Cicacota - que fica na divisa entre a dúvida, as sombras, as história e o medo.

Sou homem feito, e isso já é meio desgarrável de qualquer sentido peculiar!

Tenho poucas histórias pra contar. Só me disseram na infância: cuidado com as coisas do além.

E hoje sou cuidadoso com todas as coisas. Medroso de dar dó. Medo! Medo de falar, de entrar ou sair. Medo do verão ou do inverno. Medo até de dizer.

Pois, se me falam de lá: se acautele com as sombras. E se dizem isso é porque elas existem dentro de cada um.

Não há um canto sagrado para os sentidos!

Tinha medo de meu avô e sua amante. Tinha medo dos presentes que ganhava dele que, sabia, eram dela. Ela, sábia, me conquistou e dois dias depois morreu de agonia apressada. Meu avô ficou só, sem mulher e sem amante; e eu, cá, a pensar: acabaram-se os presentes!

Pois, de verdade, avós não sabem comprar presentes: dão centavos que a gente gasta dando pros outros. Nem pro circo dá pra ir.

Por isso, digo, de alma encurvada: medo há!

E foi no dia que meu avô morreu de solidão que fui a seu enterro. Levei um pacote de balas, um de amendoim, um estilingue e um terno preto que me engolia todo. E via lá eu - meu avô adormecido, indeciso e apático, enfurnado no além.

Depois daquele dia - nunca mais ganhei nada.

E como não acredito no além, sou forçado a dizer que um dia, ao levantar ouriçado e homem grande, encontrei ao lado do meu travesseiro um pacote de pipocas !

E digo, amedrontado, que se não existe nada, mais nada, além do outro lado do mundo, sei que existe meu avô e sua amante ainda tecendo, com amor, armadilhas de prata para este conosco.

E agora vivo assim, medo tenho de sobrar; mas Cicacota existe tão esquecida como meu avô. Só que brinquedos, nunca mais ganhei.

Não sou alvará de ganância, mas que o outro lado existe, isso lá existe.

Mas são coisas de meu espírito que hoje vasculha o medo que vem atrás com uma sacola de pipocas, um avô e uma mulher amante!

Reunir isso tudo em mim, dá medo, muito medo, até de dizer!
José Kappel
Enviado por José Kappel em 09/01/2020
Reeditado em 09/01/2020
Código do texto: T6838262
Classificação de conteúdo: seguro