Minha Redenção
 
Fugi de mim aos 18 anos. Estava quebrado até os ossos. Nada restava de ser humano em mim. Apenas sombreiros de lembranças e pensatas de fuga do mundo exterior.

Por isso, encachado de tristezas, levei meus dedos ao copo e tentei meu primeiro suicídio.

Nada tinha de grandeza em meu gesto. Apenas uma restinga de vontade e simpatia por desaparecer por completo.

A covardia fala mais alto, quando se tem dúvida. Por isso, meditei muito naquela tarde de 1941, em tudo o que eu devia supor fazer. - Sumir de mim - Pensei no primeiro gole.

Entardecia e charretes enceradas de luxo, desfilavam pela avenida principal, levando seus donos e seus escravos. Escorrachava uma chuva amena. O céu tinha se fechado todo e um vento começou a soprar diante das pessoas de pouca cautela e se amedrontavam com o ardor da natureza que parecia esbravejar em mil trovões.

Me guarneci de todos os sintomas. Já estava só. Ao meu lado uma maleta de couro, dessas de carregar avulso. Nela, não continha absolutamente nada. Nem um papel: estava vazia.

Meu corpo começava a ficar tonto de tantos algures de álcool. Um ritmo de felicidade vinha e ia, absorta e condizente. E conflitava com minha angústia.

No meu pensamento só havia a vontade de partir. Não sei porque os jovens tem tanta vontade de partir e chegar. A minha era de partir.

O sino da igreja bateu cinco vezes, remediando o silêncio da tarde.

Levantei meio cambaleante. Paguei a conta, peguei minha maleta e fui escorrendo pelas calçadas, sentindo tudo diferente; até as luzes respingavam mais ardosas.

Sabia o que estava fazendo, mas não media a dimensão do meu ato. Estávamos à beira de 1942. Havia uma guerra no ar. O povo se amedrontava com notícias chegadas pelo rádio. Eu já não me importava muito com as batalhas. Estava enfrentando uma, interior.

No dia seguinte toda a vila comentava meu suicídio.
Não sei se foi uma morte prematura.
Não sei se estava feliz ou amuado.
Carrancudo ou triste.
Nunca mais acordei de mim mesmo.
O que havia perdido, perdido foi de vez.
Num sono profundo me imersei...
e lá fiquei dias e dias,
meditando num quarto semi-escuro, cheirando a formol.

Se alguém se importou com isso, palavra que não sei.
Mas acho que não, lógico que não!

E mais um ano se passou...

A guerra acabou. Os homens retornaram à pátria. As bandeiras se arriaram coloridas de sangue e eu desfeito e só como um pássaro ferido procurando ninhos seguros.

Guardava a mesma mágoa de ter nascido, órfão da vida. E desfilava agora, pelas mesmas calçadas com uma cicatriz na testa.

Não houve morte em meu corpo naquele ano.

E agora, desconversando, tentei morrer e não consegui.

Mas continuo fraco de espírito e chameado de feridas de quem lá eu perdi... e sei lá o que perdi: a bala mal disparada havia, em sua rapidez e agilidade, remoído de mim parte de minha memória.

E agora, pra pior ou pra melhor, naquela tarde de primavera de 1943, eu perambulava pelas ruas, sem saber quem era.

E até piedade me deram: pão endurecido e uma moeda pra sustentar o aguardente.
José Kappel
Enviado por José Kappel em 09/01/2020
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