Prenhez do Tempo
 
Depois de muito me julgar cheguei a conclusão que as portas cedradas e as janelas vitralizadas estão sempre abertas. O segredo resiste ao tempo. Basta saber a quem abri-las e para o quê!

Se você não for capaz de si mesmo, não será capaz de nenhuma conquista. Se você não se abre para você mesmo - como se mira augusto num espelho - poucas esperanças restam de conquistas. E alvitres.

Passeando hoje cedo pela Avenida Central li as manchetes dos jornais expostas nas bancas. Sabia que a República havia sido proclamada. Mas isso pouca me interessava. As maiores e densas morais políticas não me abraçavam.

Enquanto o bonde cortava a avenida, via escravos carregando módulos de madeira ou grandes caixas na proa dos costados. As crianças, ao largo da praças, brincavam com cataventos coloridos e as meninas corriam com suas bonecas a procura ou se escondendo de algo.

Vi as lojas se abrindo e os homens, engravatados e com chapéu oval, dirigindo-se ao trabalho.

Na cidade não moravam os pobres e nem aqui era permitido trabalhar. A não ser os escravos.

Só os de boa família e complacentes com a nova política recheavam os escritórios de advocacia ou contabilidade.

Cheguei próximo de minha casa. Saltei um ponto antes e fui andando pelas calçadas preguiçosas. E fui pensando na vida. E na morte.

Não havia sentido na vida. Mas na morte havia.

Era um transplante de genes que se deslocavam para outros mundos que ainda não conseguimos entender quais sejam. A vida porém era de um nonsense e estapafúrdia de fazer rir palhaços!

Em nada, nada mesmo, havia sentido na vida. Cheguei a esta conclusão após viver 80 anos. Mas o que me trouxe até aqui não sei explicar nem tão pouco entender.

Seria eu a oitava maravilha do mundo que nesta idade tinha ainda um corpo de jovem? Será que a natureza iria me pregar uma peça e me rasteirar de uma só vez, igual a alguém que leva um violento soco?

Não sei explicar mais nada. Sei apenas que estou lúcido. E essa solidão e lucidez me leva todos os dias a engrossar meus lábios de bar em bar. Sento num canto sozinho e fico a ver figuras passar. Umas estranhas, outras não. Mas são figuras de meu tempo.

Afinal o que eu fazia no tempo dos outros? As coisas andavam depressa demais e eu as seguia sem entender muito suas transformações.

Meditando junto às portas e janelas dos bares é que cheguei a conclusão de que já havia ultrapassado meu limite de tempo e que nada mais havia para mim neste novo tempo.
Ou me esqueceram aqui ou me preparam uma surpresa que agradável, não é.

Então, sem vesga ou nesga, tolhido pelo álcool, atravessei a avenida e esperei o primeiro bonde passar e sob os trilhos me atirei.

Ainda ouvi vozes, "Não... não... não faça isso". E não senti mais nada. Uma alegria interior me tomou.

Agora, mais denso e fogoso, me alvoroço todo no útero de uma nova mãe. Meu passado estava morto e eu novamente vivo num novo tempo.

E como é escuro esse largo de plasmas!

Uma prenhez que só faz rir meus novos pais.
José Kappel
Enviado por José Kappel em 03/01/2020
Reeditado em 06/01/2020
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