Casa de Cimento
 
Tenho uma casa de madeira, uma cerca de flores e uma casa de cimento rodeada de arames. Tenho duas casas debruadas no penhasco de onde a vista, fogosa, me distrai, mas de onde não vejo ninguém, a não ser luzes pequenas cintilando lá embaixo. Tudo certo, não quero mesmo ver ninguém.

Tenho uma casa de madeira cuja lembrança me leva à juventude onde juncos se entrincheiram a procura do que eu fiz. Tenho uma casa rodeada de cimento onde se guardam as coisas que não fiz.

Perdi pela hora. Não marquei data, nem tempo, não tinha calendários ou escrivães. Tinha uma roda de crianças. Depois logo se fizeram adultos. Depois de viver e viver, cansaram e morreram.

Por isso, todos o mortos descansam na caixa de cimento que me falta espírito e veracidade para abrir. É um instrumento sem música, que nada toca a não ser a rigidez do silêncio que ali é imposto.

Na outra, de madeira, vejo e medito do meu terraço as coisas que não fiz. Ingredientes sem fábricas onde reflito sobre as coisas e os homens.

Há pouco do que falar da casa de cimento. Lá eu não chego, não me aproximo e rezo para que não abram a casa do meu passado.

Na outra casa há bastante luz. Fiz um lastro de flores de plástico que rodopia ao sabor de vento. É todo de azul e sei quando venta ou não. Passo horas olhando aquela hélice, sem motor, que é movida a vento.

Quando ele não para de rodar e acentua mais seu rodopio, me agasalho. O frio se aproxima constante. Quando o tempo está ameno e só o sol brilha, o vento morre e minha ventoinha de plástico fica imóvel. Me ponho de camisas largas e aproveito o calor.

É a minha casa preferida apesar de estar próxima à casa de cimento. Meu médico já pediu que a abra e deixe entrar pelo menos um pouco de luz. Me neguei, como um maestro sem orquestra. Colocar os fantasmas que habitam zoares e imprudentes a me cutucar o interior com varas de ontem? Nunca!

Tenho um calendário sem data. Foi feito todo em branco, assim não sei qual o dia de hoje, qual o dia de amanhã. Sei que é algum dia igual a outro, simplesmente com as mesmas características de ontem. Se formo a data, me angustio.

Mas a caixa de cimento eu não abro não. Foi uma sutil arquiteta que a construiu que hoje, não sei se viva está ou não. Sei que ela construiu com muito carinho e aplicou todas as suas técnicas particulares para erguer aquele monturo de lembranças que eu guardo lá.

E ela fez de tão bem que fui obrigado a enclausurar todas as coisas lá. Coisas particulares a bem dizer, trancadas com quatro chaves.

Quanto a casa de alpendre e madeira de cedro é outra coisa. É lá que moro e avizinho morros e montanhas, selva, vegetação rasa e planícies onde o sol se põe. É lá que moro e nunca me arrependi.

Mas a casa de cimento, esta, sem favor nenhum e sem alegria passageira, essa eu não abro não.

E quando vieram fazer minha ficha médica eu disse, disfarçada e carinhosamente, que morava na casa de madeira. Tal casa, sem datas a marcar... Pois ela era, afinal de contas, meu passado cruciado de incertezas e fantasmas valentes.

Mas a de cimento, essa eu não abro não.

Mas vieram os senhores doutores e na hora da internação me aplicaram um injeção nada dengosa que logo desvaneci de pleno sonho.

E no sonho haviam quatro cavalheiros de armaduras e coletes à prova de bala, seguravam seus cavalos e carregam cada um quatro chaves. Eles, simplesmente estavam prontos para abrir a casa de cimento. E eu pronto para, de medo de a abrir, morrer...
José Kappel
Enviado por José Kappel em 01/01/2020
Reeditado em 06/01/2020
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