Coisas de Vida e Morte
 
Sou simples, mas pedagogo. Nasci antigamente. Fui filho de primeira instância, registrado, batizado e comungado.

Logo depois todos se arrependeram disso. Quando cresci viram o erro cometido. Mas já era tarde, pois o céu de cetim já havia me aceitado. Larguei a religião aos três anos por incompatibilidade sexual entre as partes. Cada um pensava de uma maneira.

Mais tare, formado em pedreiro, comecei a entender o valor das pedras. Sem elas não haveria quase nada no mundo. Por isso, me dediquei com afinco a sua geometria. A lapidá-la e aprender a cortá-la para que se armasse um cosmo pasmo entre suas bordas.

Mais tarde, larguei o setor de pedraria e fui me dedicar a conquistar o próximo. Pois, é verdade, nada existe de mais difícil. O próximo é arredio, desconfiado, prevenido e temeroso. Digo isso, porque tinha três vizinhos que se afastavam de mim a cada dia. Quando o próximo não é tudo isso, é indolente. Mas para que um conquistador precisa de vizinhos? Assim, abandonei-os e passei a viver sozinho.

Morava num porão com uma janela descascada e desbotada e um batente que não tinha porta.

Passei boa parte de minha vida neste porão. Quando fazia frio lá fora, fazia frio lá dentro. Quando o calor era insuportável lá fora, também o era lá dentro. Por isso, nunca me mudei. Afinal vivia em constante e árido contato com a natureza.

Um dia, esqueci onde morava. Procurei por toda a redondeza e nada. E vieram me contar que haviam roubado meu porão. Gatunos levaram meu batente e minha janela. Não faz mal. Deviam precisar mais do que eu.

Então, fui morar próximo a um cemitério. Era gente morrendo o dia inteiro. E lá badalava o sino. Tocava e, pronto, era um morto chegando. Enjoei da vida de vizinho do cemitério, pois mesmo bêbado, não me deixava dormir.

Foi então - e que maledicência - corrompi uma menor de 36 anos. Digo menor porque sua altura batia quase na minha perna. Ela deu queixa e fui morar na delegacia com direito a todas as regalias de um preso.

Um dia houve uma rebelião e todos fugiram e eu fui o único a ficar. Quase me lincharam, mas de boa voz, ia eu perder aquela mordomia de bom preso interior? Estava dentro de mim mesmo. Vivia preso num casulo onde não havia sol, nem lua, estrela, calor ou frio...

Mas o que vocês esperavam dizer deste sonho de um homem que já morreu há 50 anos? - Coisa de louco.

Mas as árvores continuam a crescer e os jardins a florir - dizem.

Ser um mortal demanda muita energia e perspicácia e isso nunca me faltou. Só faltavam amigos. No dia que fui só encontrei um coveiro a solavancar meu corpo.

Coisas da vida e da morte!
José Kappel
Enviado por José Kappel em 30/12/2019
Reeditado em 06/01/2020
Código do texto: T6830484
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