A (RE)EXISTÊNCIA DO NEGRO SER

A minha luta, a luta do meu povo foi, é e sempre será diferente da sua luta, de seus ascendentes e descendentes.

Vocês são convidados a existir, nós, a nos redimir. Redimir de um mal que não sabemos qual seja, nem mesmo quando e como o cometemos.

Não matamos um leão por dia, matamos serpentes, cobras, jacarés, lagartos, e todo tipo de animal peçonhento que injeta seu veneno letal nas nossas almas para nos imobilizar e nos matar bem devagar, gradativamente, e poderem assistir a nossa degradação humana e social com deleite até o último resfolegar.

O veneno da exclusão, do desprezo, do assédio, da depreciação, do isolamento, da rejeição.

Já somos vacinados contra esse veneno e sabemos onde vocês estão, quais são suas ações e de que forma atuam. Vocês estão em toda parte, nas instituições público-privadas, nos ambientes educacionais, no ambiente corporativo, no aparelho estatal, na imprensa, nos livros, nas igrejas... Sim, nos lugares que dizem santos também, e repetem com eloquência, o tempo todo, que não aceitam e não compactuam com nenhum tipo de preconceito. Discurso tão mentiroso quanto conveniente para varrer a sujeira para debaixo do tapete.

Vocês são como a laranja podre que contamina as que são boas para o consumo.

Cospem na nossa cara e pisam no nosso peito, esmagam nossa dignidade e depois dizem que nós mesmos somos os culpados, por sermos incapazes, incompetentes, desqualificados, despreparados, emocionalmente desequilibrados, problemáticos e sistemáticos.

As estratégias são bem pensadas e articuladas. Tudo de forma que venha a depor contra nós mesmos, e aos olhos dos que estão ao redor, somos os vitimistas, os que não lutam, querem tudo de mão beijada e não aceitam corrigendas (o que se traduz em humilhação).

Ah! A tal da meritocracia. Não temos porque não merecemos. Não fazemos por merecer... Vocês sabem que fazemos... É que quando temos alguma chance, logo dão um jeito de nos fazer sucumbir. É mesmo tudo uma questão de querer (ou seria lutar, lutar e perder?)?

A sua luta nem de longe tem a ver com a minha. Você não tem que provar o tempo todo que é bom no que faz; honesto; tem bons antecedentes; que entrou no estabelecimento para comprar e não assaltar; que não vai causar nenhum mal para as criancinhas do parque; que não é o Lobo Mal querendo devorar a Chapeuzinho Vermelho; que está correndo porque está atrasado para o trabalho, e não porque está fugindo; que (professor) entrou em sala de aula para dar aulas e não para aliciar menores, cometer abusos ou causar-lhes traumas; que anda bem vestido porque é trabalhador, e não uma prostitua ou um traficante; que sabe falar Inglês porque tem cognição intelectiva e um cérebro normal como o de qualquer outra pessoa, e não porque somos espécimes raras de animais que devem ser expostas em um museu - "O preto que conseguia aprender idiomas."

Você não tem que provar que é gente, que sente e se ressente, que é decente.

A sua luta é de glórias, de acertos e concertos - musicais e angelicais. A nossa luta é de inglórias, desacertos, quebras, interrupções, consertos e recomeços, infinitos e infernais.

A sua dor é de não saber o que fazer com o muito que já tem, a minha é de não saber o que fazer sem o básico, o mínimo que não se tem. Seu lugar de fala, ainda que tendo enfrentado inúmeras dificuldades é sempre o de vencedor. O nosso, não raras vezes, sempre finda no de perdedor. Já se perguntou porque gostamos tanto de perder? Que adoração é essa, que fascínio é esse que temos pela derrota, pela perda, pela calcitrante dor?

Pergunte-se isso lembrando porque, certa vez, demitiu aquela funcionária preta, estampando um belo sorriso no rosto, sem a mínima dor na consciência, acreditando que estava a fazer um bem, porque estava preocupada com o emocional dela. Ah! Como diz um autor desconhecido: "Tenho medo das maldades alheias, mas tenho ainda mais das maldades disfarçadas de bondades."

Você vive, eu sobrevivo. Vocês vivem, nós sobrevivemos.

Vocês são convidados a existir, nós, a resistirmos para existir.

Feliz Ano Novo!!!

Cris Sozza - professora, escritora e palestrante - ativista das causas raciais

Cris Sozza
Enviado por Cris Sozza em 30/12/2019
Reeditado em 30/12/2019
Código do texto: T6830103
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