É ao ver-te que pergunto, se já fostes como eu

Eu caminhava distraidamente pela praça da cidade, contornando os bancos e canteiros de flores coloridas. Velhos monumentos que tinham suas mil histórias ocultas, aquele em especial que marcou tanto a minha vida, a mãe com seu bebê de colo, se estendeu sobre os meus olhos trazendo recordações. Mil pensamentos vinham a minha mente, sentimentos que se digladiavam pra ver qual iria vencer. De repente os sinos da igreja começam a ressoar, os pombos revoam em círculos, em uma louca dança sincronizada, como se já soubessem essa coreografia desde a primeira badalada dada no tempo. Uma, duas, três, quatro badaladas e aquele som e a dança dos pássaros começou a fazer meu corpo se mover sozinho, com uma certeza absoluta. Eu sabia que devia ir naquela igreja hoje, mesmo não seguindo aquela religião. O padre dando o seu sermão não queria dizer nada para mim, mas as pessoas ali eram o mais significativo. E eu me surpreendi admirando e tentando perceber o que cada um trazia consigo, na sua alma. Tinha gente de todo tipo, mulheres simples, de aparência simples, homens na faixa dos seus 60, com seus bigodes proeminentes e suas camisas por dentro da calça. Casais sentados confortavelmente, como se fizessem isso sempre, assistir a missa juntos. Crianças inquietas, como se dentro de suas roupas morasse um "bicho-carpinteiro", que fazia com que se mexessem a cada segundo, achando tudo entediante. Me lembrou muito de mim, quando era obrigada a frequentar a missa com os familiares. Todas as pessoas ali me deixavam admirada, todos eram belos dentro daquele espaço, como se fossem feitos para revelar sua história naquele lugar. Assim como os diversos jovens que se encontravam ali e iam chegando a cada momento, procurando uma conexão com algo maior, buscando respostas e consolo. As vezes eu esqueço que sou um deles também, apenas uma garota de 22 anos. E os olho como se meus olhos carregassem o tempo em cada piscada.

Um jovem de camiseta preta estava com a cabeça abaixada, recostada no banco da frente, parecia haver algo errado, ele estava ali desde antes de eu chegar. E de súbito tive vontade de dizer para ele que tudo iria ficar bem, mas era loucura fazer isso. Todos temos os nossos problemas, nossos dilemas a resolver. Não sabia por que ele me chamou tanta atenção, mas eu fitei ele por um longo tempo, até o momento que ele levantou o dorso e apoiou as mãos em seu colo, prestando atenção nas palavras do padre. Desviei meus olhos para a estrutura da igreja, a obra toda era um mosaico de detalhes e cores, com seus vitrais iluminados pelo sol do meio dia e suas pinturas no teto em formato de abóbada. Uma parte de mim dizia que eu deveria ir embora, que era loucura estar ali, que tudo não passaria de uma perda de tempo. Mas a outra parte, aquela que possui a voz da minha intuição, me dizia para ficar, foi essa voz que me levou até ali e ela insistia para terminar o que havia se iniciado. Vislumbrei a pequena porta no canto direito da igreja, que dava acesso a uma pequena sala, que para mim parecia encantada, com suas estrelas douradas no teto e sua claridade vinda apenas dos vitrais coloridos. Era ali que eu queria estar sentada e eu decidi que não poderia ir embora sem entrar por um momento naquele lugar sagrado.

O tempo passou rápido e o momento de comungar chegou. Me dirigi até a fila no centro dos bancos e enquanto seguíamos o balanço dos passos, aquele estranho de camiseta preta veio por dentro das filas, se encaminhando na minha direção. Passou ao meu lado e meu coração deu um sobressalto, mas não o encarei. Passei tempo demais alimentando ilusões, então agora fujo delas. Minha cabeça me dizia que não existia um motivo pra eu prestar tanta atenção naquele rapaz, e insistia para que eu aceitasse que ter ido ali hoje não significava nada. Mas meu coração e aquela voz que me guiou me faziam sentir algo que eu não conseguia expressar em palavras, era apenas uma certeza de estar onde deveria estar. O moço me encarou e passou por mim e eu continuei seguindo em frente. Muitas pessoas se encaminhavam para a saída e eu virei para ver se ele também estava indo embora e vi ele na última fileira ajoelhado, com as mãos entrelaçadas e olhos fechados. Por um minuto a fé nisso tudo me fez ver a beleza da cena. Chegou minha vez de receber a eucaristia e ao invés de ir embora ou sentar onde estava antes, continuei seguindo em frente e virando a direita, na porta da pequena sala. Algumas pessoas já estavam sentadas lá, de olhos fechados. Uma vela artificial de chama vermelha reluzia no topo da estrutura em forma de castelo que ficava centralizada na pequena sala, e possuía uma gaveta de prata entalhada com o desenho de um coração flamejante entre dois veados galhudos, para comportar a hóstia. Eu me ajoelhei sobre o banco almofadado e fechei meus olhos, nada vinha a minha mente. Quando olhei para frente, vi o jogo de luzes na parede e aquilo mexeu muito comigo, quase a ponto de arrancar lágrimas. As pessoas, ao se levantar, tocavam no coração de prata antes de sair da sala, como um gesto de proteção, um amuleto. O padre finalizou a missa e qual foi minha surpresa ao ver o estranho de camisa preta entrando na sala e se ajoelhando dois bancos a frente. Não entendia o que aquilo significava, mas fiquei feliz por perceber que um mecanismo, mesmo que eu não o entendesse por completo, estava funcionando. Hoje, ali, desde o momento do sino badalando e dos pombos dançando e me indicando a direção para onde eu deveria ir, eu percebi que eu era uma engrenagem girando junto com muitas outras. Como um grande relógio se movimentando graças a delicadeza e firmeza da junção de outras tantas peças que estavam no seu interior. Eu saí pela pequena porta da sala encantada sem entender o por quê de eu sentir que precisava estar ali, ou mesmo sem compreender ao certo todas essas sensações e percepções que vieram até mim. Mas descendo as escadarias da igreja, eu sabia que no futuro eu iria entender e que havia escutado algo além dessa eu que duvida de tudo. As peças do quebra-cabeça iriam se revelar e se encontrar. Até conseguir mostrar o que realmente queriam transmitir. Fiquei feliz, por que a minha fé nisso tudo, nessa certeza de que nada foi em vão e que eu posso não entender claramente o que me foi passado, mas que eu vou entender, me fez perceber que ainda resta algo dentro de mim. No presépio de Natal da Catedral dizia "Só Ele preenche o vazio", mas "Ele" pode ser muitas coisas. E pra mim, essa centelha de possibilidade foi o suficiente para preencher um pouco desse vazio.

Música que não conseguia parar de escutar na minha mente: Longe do mundo- Sara Tavares. A música do Corcunda de Notre Dame.

Thais Piccolo
Enviado por Thais Piccolo em 27/12/2019
Reeditado em 27/12/2019
Código do texto: T6827720
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