O relógio do tio Aristides

Todo ano, no dia do Natal recebíamos o Papai Noel. Era uma festa, ele chegava um pouco depois do jantar e trazia um saco com presentes e ia chamando as crianças pelo nome e entregando os pacotinhos e umas balas, não sem antes perguntar se tínhamos nos comportado e obedecido os pais. Nesta hora, receosos de mentir, dávamos uma olhada para nossas mães que num sinal discreto com a cabeça acompanhado de um sorriso autorizavam a responder um “sim”. Eu e meus primos e primas ficávamos ansiosos pela chegada do bom velhinho para ver se ele tinha acertado no presente. A exceção era a neném, minha irmãzinha menor de 3 anos que tinha medo daquele senhor barbudão, mas não abria mão do seu presente e ficava por traz das pernas da mamãe empurrando para que ela pegasse da mão do Noel o que ela tinha direito. O Natal era na casa da minha avó e reunia os seus 6 filhos e suas famílias. A casa ficava cheia.

Eu tenho na memória que achava falta do tio Aristides nesta hora, mas um ano que eu perguntei para a vovó, lembro de ter ouvido uma desculpa qualquer que sequer foi captada, pois a atenção já estava voltada para o Papai Noel que chegava todo alegre falando com uma voz bem grave Ho!Ho!Ho! A alegria e excitação estavam lá em cima.

Mas quando eu tinha 6 anos, vi que depois do jantar tia Guilhermina sussurrou algo para o tio Aristides. Parecia apressar-lhe por algum motivo. A maioria já tinha terminado de jantar e as crianças estavam em alvoroço. Ele deu uma mordida grande numa coxa de galinha passou o guardanapo na boca e foi saindo do ambiente. Eu segurei no seu pulso e reparei um relógio grande de aço com mostrador de fundo preto e disse:

-Aonde você vai titio? Já está quase na hora da chegada do Papai Noel. - Ele ficou meio sem jeito e respondeu que precisava ir urgente ao banheiro pois estava meio apertado

Dali uns dez minutos ouvimos uma batida na porta da frente. Alvoroço total com gritos da criançada de “É o Papai Noel! É o Papai Noel!” – Era realmente e ele trazia um saco bem cheio de pacotes. Era reservado um canto da sala onde ele sentava numa poltrona e, puxando do saco que ficava descansando ao lado, ia lendo os nomes escritos nos pacotes. Era a chamada para a felicidade.

Naquele ano na escolinha um menino riu quando eu disse que o Papai Noel iria lá em casa. O menino havia me dito que era tudo mentira e que Papai Noel não existia. Falei que ele era um bobo e não dei muita bola, mas já começava a fazer perguntas inconvenientes para mamãe e papai, que com amor desconversavam.

Naquela noite de Natal quando fui receber o presente, Papai Noel percebeu que eu estava meio desconfiada - eu olhava para sua barba e dizia:

-Ei, esta barba nasceu aí?

-Ei, ho, ho, ho, hoje quem faz as perguntas sou eu! Você tem sido uma boa filha?

-Sim Papai Noel. – foi minha resposta depois do ritual de autorização da mamãe.

-Que bom tenho aqui um lindo presente para você. Espero que você goste.

Enquanto eu abria rasgando o pacote de presente o Papai Noel foi fazer um carinho em minha cabeça.

Neste momento acabou a magia daquele Natal. A manga da sua blusa de cetim vermelha arriou um pouco e pude ver o relógio. O relógio do tio Aristides. Ele percebeu que eu tinha visto e me puxou para contar um segredo ao ouvido. Sussurrando me disse:

-Agora que você já sabe não conte nada para seus priminhos para que eles continuem acreditando. – o titio Aristides me deu um beijo, umas balinhas, deu uma piscadinha e um tapinha no meu bumbum dizendo

-Agora vai que eu tenho que terminar de entregar estes presentes e pegar meu trenó, pois tenho muitas casas para visitar. Ho! Ho! HO!. – próximo presente é para... – fazendo mira para tentar ler a letrinha miúda disse - Pedrinho.

Bom, muitos anos se passaram desde aquele Natal, que marcou o fim da minha fé na existência do Papai Noel. Fiquei sabendo como ele sempre acertava o presente, uma vez que quem comprava era minha mãe e meu pai que me consultavam e direcionavam meu desejo conforme suas condições.

Este ano estou com 18 anos e Papai e Mamãe disseram que levariam eu e a mana para sair uma noite ver as luzes de Natal, pois nossa cidade, a bela Curitiba, estava toda vestida para o Natal. A mãe tinha entrado no site da prefeitura e viu vários locais com programações culturais e praças com pinheirinhos iluminados.

Assistindo uma peça de teatro no Largo da Ordem, acabamos por ficar mais, aproveitando para tirar algumas fotos na Praça toda enfeitada. Voltamos para o carro, onde papai decidiu fazer um city tour pelos lugares mais interessantes. No caminho debaixo das marquises corpos enfileiravam-se para dormir. Para a maioria um papelão servia de colchão. Perto de um sinaleiro que papai não conseguiu administrar a velocidade para pegar aberto olhou desconfiado para todos os lados e disse num tom ríspido para minha irmã:

-Simone, feche já sua janela. – Simone olhava admirada a Roda Gigante da Praça Santos Andrade com a cabeça quase para fora da janela do carro. Ela fechou assustada com a bronca e papai, percebendo que tinha ido muito além do tom tentou atenuar – Desculpe, é para sua segurança. Estes marginais podem nos abordar com o vidro aberto...

O clima ficou pesado dentro do carro e ninguém falou mais nada. “Estes marginais..” – eles eram tão marginais que estavam marginalizados do tempo – para eles não era dezembro e não tinham no tempo marginal deles uma história lá do passado onde um menino filho do próprio Deus veio conviver conosco. Mas o número de marginais da esperança era muito grande e começavam a incomodar. Talvez se olhássemos para outro lado conseguíssemos dormir um pouco melhor. Eu não sei, esta noite não estou conseguindo dormir e talvez me doa um arrependimento de não ter contado para meus priminhos que eu vi o relógio do titio Aristides....