Seus cachorros!

Voltar pra casa tarde da noite. Se fosse de tardinha, teria visto as cores do outono impressas nas árvores. As mil cores, os meios-tons do outono. À noite não. As ruas são bem iluminadas, mas as sombras são sempre sombras. Assovio pra esquentar o corpo e espanar o medo que, em tais momentos, costuma subir à espinha que nem poeira.

As sombras são sempre sombras. No caminho de casa, todas as casas têm cachorros e há sombras enormes, cachorros enormes, sombras e cachorros amedrontadores. Voltar pra casa à noite dá uma bambeza que começa, acho, nos cotovelos e se esparrama pelo corpo todo, até bater lá no coração. Gelo. Gelo de medo dos gigantes que vou enfrentar nessa rua estreitinha e pequena que é a mais comprida rua do mundo. Como se eu fosse o buscador do velo de ouro e eles os guardiões apaixonados, nascem cachorros de cada portão da rua, brotam sentinelas de cada jardim. Não gostam de mim ou pressentem que tenho medo. Emito vibrações, lá isso é verdade. Ou será porque sou estrangeiro? Cabelo escuro, aspecto subdesenvolvido. Talvez seja isso que os açule contra mim.

Daquele portão, por exemplo, há de surgir o grande dobermann que, irado, há de rosnar, à medida que me aproximo. Barulhos nas moitas. São eles. Desta vez se uniram, vão atacar em grupo, distribuídos, legionários. Não, ainda não. São maçãs que caem das sombras. Maçãs se perdendo, folhas secando, o vento magoando os olhos. O cão policial e o gigantesco dobermann não gostam de mim, não há como duvidar.

Mas eu os mato. Ah, se mato! Não fiz nada, fiz? Só porque passo na porta deles? Só porque sou estrangeiro? Vou matá-los em legítima defesa. As maçãs apodrecidas serão as minhas testemunhas. Vou matá-los. Quando me atacarem, sei que vou gelar, mas vou vencer o gelo. Hei de brigar dentro de mim mesmo pra vencer o medo, antes mesmo de brigar contra os dois leões. Eu os espero, mato os dois. Se tivesse um revólver atirava com gosto na goela deles, quando escancarassem as mandíbulas para me estraçalhar, aquele rosnado grosso me fazendo tremer as pernas.

Atiro na goela, que é pra sair pelo rabo, cortando tudo, rasgando tudo, quero ver o sangue jorrando que nem petróleo, jorrando longe, esguichando pra todos os lados, quero gozar cada um dos uivos de dor. Eu os mato. Se não tiver revólver, vai de faca mesmo. Uma faca pontuda, punhal será, furando o pescoço de cima pra baixo, entrando de jeito a ficar cravado na boca, um poste espetado, nascendo de debaixo da língua. Espetado, com força.

Mato, mato sim. Sem remorso, sem dor de consciência. E mato até o dono, se ainda tiver coragem de reclamar. E, no meu desatino, sou capaz de matar até aquelas senhoras alvas, as velhinhas bondosas da Sociedade Protetora dos Animais. Ninguém tem o direito de me passar medo, ninguém mesmo. Mesmo que esses cães não ataquem, mesmo que sejam inofensivos, mandem esses bichos calarem a boca, escondam essas feras quando eu passo. Cachorros filhos duma égua! Seus donos pensam que mandam no mundo, que podem me passar medo? Só porque são gordos e bem nutridos e têm casas bonitas?

Escondam esses bichos, entupam a boca desses bichos ou aguentem as consequências. Não reconheço seu direito de me assustarem com seus cachorros de merda. Pra vocês, aqui meu elogio, meu cala-boca, minha adulação: está na ponta da faca ou no cano do revólver. É só escolher, é só dizer!

Série Copenhague Zero Grau

Copenhague, Dinamarca/out/1979-

(publicado no jornal Município de Pitangui, em 28/09/1980)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 02/12/2019
Código do texto: T6809059
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