O CAFÉ SAGRADO

O CAFÉ SAGRADO

*Rangel Alves da Costa

De vez em quando a gente sente uma vontade danada de dividir um cafezinho com algum amigo, com alguém que a gente gosta muito. Um reencontro, uma palavra, um afago ao coração. Mas hoje está tão difícil de ter verdadeiros amigos que mereçam um cafezinho, então apelei demais nos meus desejos e sentimentos.

Como Deus é também onipresente, está por todo lugar, eis que de repente decidi surpreendê-lo. E convidei-o para tomar um cafezinho. Para minha surpresa, o bom homem aceitou. Só impôs uma condição: café batido em pilão, peneirado em quintal, preparado em bule de fogo de chão.

Ora, a grandiosa expectativa de ter Deus dividindo um cafezinho comigo me fez conseguir o que desejava ainda no entardecer do mesmo dia. Assim, quando a noite abriu a sua boca para chamar a lua, os poleiros dos quintais já ficando apinhados e o homem do sino se preparando para o anúncio da Ave Maria, bastou que eu abrisse um pouquinho a chaleira e do nada o bom homem surgiu já sorridente.

Uma xícara apareceu na sua mão com o café já dentro. Começou a saborear sem necessitar levar a borda à boca. Em seguida gesticulou convidando-me a acompanhá-lo. Segui-o levando xícara, apreensivo pelo que poderia ouvir. E então, do lado de fora da porta, perante as sombras do anoitecer já com raio de lua, ele colocou a mão no meu ombro e disse:

“Quem faz o grão do café também faz o açúcar. Mas a mistura cabe ao homem. O amargo e o doce estão na medida de cada um. Há quem não goste de açúcar, há quem adoce demais. Porém nada disso possui relevância se não souber sentir o sabor. Mesmo o sabor amargo pode possuir a doçura da lição para o amanhã. E a próxima xícara da vida certamente saboreada de forma diferente”.

Eis o bom homem falando suas verdades através de parábolas, logo imaginei. Mas tão ricas suas palavras que uma só imagem servindo para as mais diversas situações. Pela boca de Deus, por exemplo, o sal não significa apenas o elemento granulado e ácido, mas a própria luta, o trabalho, as dores, os sofrimentos, o sentido da preservação. E assim é que surge o sal da terra como a força poderosa de renascimento, eis que em seu seio a química da conservação do homem, da vida, da própria terra.

Ainda com o braço colocado em meu ombro, caminhava lentamente como se guiasse pelos arredores. Minha xícara de café já estava vazia, mas a dele sempre renovada e cada vez mais perfumada. Eu olhava e sentia que ele bebia aos poucos – sem levar a xícara à boca – e também que parecia mais animado a cada gole tomado. E continuava falando perante a natureza e o mundo ao redor:

“Há o homem que semeia o grão. Há o homem que cuida da plantação. Há o homem que faz o recolhimento da safra. Há o homem que vai dar a destinação final. E também há aquele que por último recebe os frutos de todo esse percurso ao derramar sobre a xícara o café e prazerosamente bebê-lo. Ninguém vai com a xícara ao pé de café. Ninguém recolhe o grão de dentro da chaleira. Por que assim acontece? Em verdade, em verdade vos digo: cada um tem a sua parte no mundo, cada ser deve colocar seu quinhão de terra para cimentar o alicerce da vida, pois somente assim poderá dizer que foi útil na grande realização do mundo”.

De repente percebi que a xícara de Deus havia esvaziado de vez. Certamente que logo se encheria sozinha, mas não. Contudo, minha mão que segurava a xícara sentiu um peso maior e quando a levantei percebi que a xícara estava quase transbordando. Espantado com a situação, porém sem querer fazer qualquer pergunta a Deus a esse respeito, levei a xícara à boca. Mas antes de experimentar, ouvi de sua voz já parecendo distante:

“Toma de minha palavra e saciai tua sede. Aquele que bebe de minha palavra terá sempre xícara e pão, pois bebe de mim pelo que foi concedido pelo meu Pai”.

Escritor

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