O Barbeiro
Curto coisas antigas. Vintage, alguns diriam. De discos de vinil a antigos bolsilivros de faroeste. Toda hora inventam algum termo para definir pessoas como eu, que ainda gostam de usar máquinas de escrever. Não me importo com tais nomenclaturas, só quero mesmo apreciar o que eu gosto, o que me traz aquela nostalgia gostosa porém, às vezes, dolorida de sentir.
Corto meu cabelo nessa antiga barbearia já tem algum tempo. A velha placa, visivelmente pintada a mão, a julgar pela imperfeição dos tipos, ostenta o termo que acabo de usar: Barbearia. Longe dos atuais e badalados salões com expressões em inglês, nos quais se pode beber cervejas artesanais e até jogar sinuca. Nada disso. Apenas um modesto e pequeno espaço, simples demais até, no qual não é preciso marcar horário e que, normalmente, é preciso esperar a vez para ser atendido. O preço de apenas quinze reais no corte é convidativo e, aliado à competência e à experiência de quem diariamente sobe suas portas, garante a fiel clientela.
Um balcão bastante bagunçado, com itens simples e básicos, como secadores, uma estufa para esterilização de instrumentos e, é claro, ela, a tradicional navalha, em perfeita parceria com tesouras. Ao lado das cadeiras estofadas, revistas diversas, a maioria sobre esportes. Alguns jornais também. A clientela aqui é exclusivamente masculina. O homem de feições duras segue seu trabalho com bastante habilidade. Nunca sequer soube seu nome, nem me senti à vontade para perguntar. Todos o chamavam de O barbeiro. Quem é naquele momento atendido permanece de olhos fechados, em silêncio, mesmo porque todos sabem que o barbeiro não é chegado a conversa. Quem se importa afinal? Estamos todos aqui pelo preço baixo, além da competência é claro. Além do mais, um velho aparelho de TV , de tubo, permanece o tempo todo ligado, num canal aberto que, naquele momento, apresenta a reprise de uma novela. Isso nos distrai. O barbeiro com precisão executa seu ofício e, terminada a tarefa, o homem levanta, ostentando um belo corte. Colocando a mão no bolso, retira e entrega o valor que todos nós já conhecemos. Não há troca de palavras, sequer um muito obrigado, o que dirá um de nada. Olhando para os presentes, o próximo levanta e se senta, tendo colocado em si o mesmo lençol que protegera a todos que ali já tiveram seus cabelos cortados ao longo do longo dia. E acredito que não tenham sido poucos.
Mais alguns minutos, uns quinze acredito, nos quais novamente não há palavras. Apenas a cara de sono do cliente e a expressão fechada do barbeiro. Numa das paredes, um calendário me chama a atenção, afinal o mês corresponde ao corrente, porém o ano é o passado. O barbeiro é tão antiquado quanto o calendário, pensei. Mas gosto do seu trabalho, do seu preço, e por isso estou aqui.
Assim que o homem se levanta e, igualmente ao anterior, faz o pagamento, o menino surge na porta. Pele morena. Acredito tenha uns onze ou doze anos, não mais do que isso. Ao seu lado, uma caixa de engraxate. Sim, eles ainda existem, eles ainda insistem. À frente da barbearia, cruzando a larga avenida, um prédio de salas comerciais. Advogados, principalmente, que garantem o trabalho do menino. Sapatos impecavelmente lustrosos a valores irrisórios que, no entanto, contribuem para o sustento dos irmãos mais novos. A mãe, viúva, recebe metade de um salário mínimo como auxílio do governo. Moram na favela aqui ao lado do condomínio. Penso que ele não vai à escola, afinal sempre o vejo por aqui, a qualquer hora do dia.
O olhar do barbeiro é de aprovação e cumplicidade, apesar de ainda manter as feições fechadas. O menino entende. Deixa a caixa ao lado da porta e entra, tímido. Roupas surradas, rotas, sem cor, e velhas sandálias nos pés miúdos. Ele caminha e se posiciona na cadeira desproporcional ao corpo franzino. Alguns dos clientes que esperam a vez se entreolham, mas nenhum comentário se faz ouvir. Esqueci de comentar, leitor, da avantajada compleição física do barbeiro. Da cara fechada você já sabe, assim como todos ali.
O lençol é colocado sem muita delicadeza no menino e, rapidamente experiência, agilidade, máquina e tesouras fazem surgir, na parte posterior da pequena cabeça, uma bola de futebol. Ao lado dela, um escudo com a estrela solitária do Botafogo carioca. O barbeiro segura então um espelho emoldurado atrás do garoto, de forma com que ele consiga ver a obra. Um sorriso grande se estende de lado a lado do rosto magro, mostrando bons dentes. O lençol é retirado e o menino salta da cadeira, não mais tímido como quando entrara. Dirige-se à saída e ainda há tempo para uma troca de olhares. Novamente a cumplicidade que eu já percebera anteriormente. Nenhuma palavra, nada pergunta, não retira dinheiro nenhum dos bolsos, não o vejo fazer pagamento algum. Empunha finalmente a caixa e sai saltitando e assobiando algo que reconheço como sendo o hino do alvinegro carioca. No reflexo de um dos espelhos percebo que o semblante do barbeiro, até então e sempre tão grave, esboça um modesto e desajeitado sorriso. Mas nada que dure mais do que alguns segundos. Novamente o rosto fechado e, diria até antipático, ressurge.
Sem dizer uma palavra, seu olhar encontra o meu indicando, finalmente, que chegara a minha vez.