Memórias de uma vida de valor

Memórias de uma vida de valor

Quando levantou naquela manhã o ar parecia pesado e o ânimo pequeno. Todos os seus movimentos pareciam lentos e a força necessária para respirar era muito maior do que antes. O tempo corria diferente. A vontade se esvaiu. Seu quarto se fechou e seu leito lhe prendia. O vigor da juventude não estava mais presente e tudo passou a ser feito com calma, diligência e atenção. Pressa se tornou defeito e precisão a nova virtude.

Buscou aos acontecimentos longinquos, ecos de uma vida passada, de uma velhice que anunciava a grande proximidade do julgamento e a distância do início. O frescor da infância não habitava mais seu corpo.

Pensou mais uma vez nos desafios e nos problemas que enfrentou. Eles pareciam pequenos agora. Com o distanciamento veio a claridade. Aqueles que disseram que a vida é o que acontece enquanto você faz planos estão corretos, apesar de terem errado em muitas outras coisas.

Lembrou do seu casamento e das dificuldades divididas com a amada esposa. Nos sacrifícios feitos em seu favor, dos desejos que abandonou e que sequer lembra mais exatamente quais e como eram. Rememorou o nascimento e o crescimento dos filhos e o sentimento de ter nas mãos uma vida que vale muito mais que a própria. Pensou novamente em como é doce sentir que poderia abandonar a vida sem hesitar caso fosse necessário e em como fê-lo, não de uma só vez como Cristo, mas ao longo dos anos, abrindo mão do que queria para cuidar daqueles que estavam sob sua responsabilidade. Buscou saudoso as imagens antigas deles crescendo ao passar dos dias. Os desafios próprios deles que, parecendo-lhes gigantes, eram na verdade pequenos. Evitou no entanto condená-los por isso. Passou pelo mesmo e sabia, assim como eles sabem hoje, que a montanha sempre parece maior quando a olhamos de baixo.

Reviveu as alegrias e as tristezas compartilhadas com a sua família. Os sucessos e fracassos dos seus herdeiros. Os encontros e o amor incondicional que sempre sentiu por eles. Os inúmeros jantares, os passeios, os diálogos, os conselhos ignorados, o dia em que saíram de casa e todos os dias em que voltaram.

Sentiu novamente como foi quando voltou a viver sozinho com a amada. Sentiu como foi ver a força do corpo dissipar e o vigor diminuir, porém sem diminuir o amor e atenção mutuos que sentiam. A paciência e o cuidado de um com o outro. O sabor da comida preparada com tanto esmero que, por mais que não fosse perfeita todos os dias, era perfeita da sua forma. As tardes na varanda, os churrascos a dois, a divisão das tarefas e a docilidade daquela que formou com ele um só corpo e um só espírito.

Veio por último a melancolia de ver seu corpo sem vida. Seu semblante pacífico e a dor de não contar mais com a sua presença. A saudade revivida diariamente acompanhada da felicidade de ter estado junto em todos os momentos, de ter se dedicado inteiramente, sem nenhuma reserva, àquela que o amou da mesma maneira.

Vendo já o fim próximo sentiu que fez tudo certo na medida do que pôde. Sempre que errou tentava acertar. Aqueles que por ele tinham consideração o perdoaram, os que não perdoaram ele mesmo os perdoou. Olhou para a Cruz em seu leito e consolou-se ao saber que buscou carregar a sua apesar dos pesares. Pediu a Deus perdão pelas suas falhas e suas limitações. Pensou que, se esta não era a vida perfeita, não saberia dizer qual outra seria. Estava pronto, entregue. Disse: “Eu não sou mais meu Senhor, faz o que quiser de mim pois não há mais nada para querer. Já tive tudo e agora não tenho nada. Mesmo assim me sinto mais rico que o mais rico dos homens. Faz de mim o que Tu queres. Amém”.