Vozes do Além!
Vozes do Além
Durante várias noites escutei o som de um choro muito sentido, que me pareceu saido das entranhas de alguém inconformado com o sofrimento que lhe foi imposto. Começava o som logo que o manto da escuridão encobria o céu, e só os sons das ondas do mar preenchia a solidão das matas de Olivença.
De início não dei muita atenção ao fato. Todavia, como o mesmo chamado teimava em se repetir, noite após noite, voltei a minha atenção para identificar a direção de onde provinha o som.
A partir do ponto em que montei a minha tenda, o som vinha da direita, e calculei a sua distância em aproximados seiscentos metros, um pouco mais ou um pouco menos.
Por curiosidade, comecei a perguntar aos meus amigos, e também aos moradores da região, que tipo de pássaro noturno poderia emitir tal som...
Essa busca de informações a respeito do provável emissor do lamento noturno não me acrescentou muita coisa; apenas serviu para descartar alguns candidatos, como a rasga-mortalha e seu característico som de rãs tecidos, que ouço quando ela passa voando sobre a minha tenda, lá pelas alturas da meia noite.
O tempo foi passando e eu acabei me acostumando a ter a companhia daquela espécie de canto, uma lamúria de carpideira, que sempre preenchia as minhas noites, algo parecido com o o personagem fantasmagórico do romance "O morro dos ventos gigantes."...
Num domingo, ha aproximadamente uns três meses, resolvi sair daqui da minha roça e fui até uma mercearia localizada a um quilômetro de distância, com o intuito de espairecer, de espantar a minha reclusão de tuareg sertanejo.
(...)
Cheguei na aludida mercearia, estacionei a minha bike e comecei a conversar com o proprietário, com o qual mantenho uma boa relação de amizade. Na mesma mesa em que estávamos, se encontrava uma moça que eu não conhecia, e mais a irmã desse meu amigo merceeiro. O aspecto cansado da menina desconhecida me chamou a atenção, como se ela estivesse a consumir muita energia. Verifiquei se estava com o meu material de trabalho em minha mochila e propus à menina fazer um rápido atendimento, para lhe amenizar o estado disfuncional.
Comecei o meu trabalho aplicando nela algumas sementes de mostarda em suas orelhas, visando controlar a ansiedade que eu havia detectado e que me confirmou...
"Eu estou praticamente sem dormir." Disse-me ela.
Peguei em suas mãos, fiz um pouco de massagem nelas, observei qual o elemento era dominante, fui ouvindo o que ela me relatava.
"Você me denota ter sérios problemas com seus pais, pois seus rins não estão em muito bom estado."
Ela riu, meio sem graça, e me respondeu.
"Moço, eu perdi a minha mãe quando eu tinha catorze anos, e não tenho contato com o meu pai desde então."
"Minha família foi completamente destruída."
(...)
Pedi então que ela me contasse o que havia acontecido com sua mãe, que me restasse a história dos seus familiares.
"Moço, minha mãe foi violentada e assassinada aqui mesmo. Além de ser morta e ter o seu corpo violado, foi esquartejado, tendo o cadáver sido ocultado por mais um mês, sem que ninguém soubesse o que havia acontecido com ela."
E continuou o seu relato num tom monocórdico, de quem já havia esgotado toda a capacidade de sofrimento.
"O assassino, quando percebeu que as pessoas estavam reclamando do mau cheio, matou dois gatos, colocou aonde estava o corpo da minha mãe e o transportou num carrinho de mão para um local mais distante, no meio do matagal."
Continuei o meu trabalho, agora massageando gentilmente a sua cabeça, e fui deixando que toda aquela torrente de dor se escoasse.
"O crime só foi descoberto porque um outro morador viu o acontecido, e mesmo amedrontado com as ameaças do criminoso, contou para um seu cunhado, o qual acabou denunciando o caso à polícia."
Terminei de trabalhar com a menina, fiquei por ali mais algum tempo, e depois voltei pra minha tenda.
(...)
De imediato o relato da menina não ligou o meu sinal de alera, e só passados uns dois dias desse ocorrido é que eu vim a estabelecer um nexo causal, ligando o choro noturno ao relato que ouvira da órfã que eu atendi, vindo entao a reconhecer ainda que relutantemente, o evidente elo narrativo entre o aviso da ave noturna e esse crime de mais de quinze anos atrás.
Como sou um cético de longa data, fui interrogando de volta as mesmas pessoas sobre o ocorrido; se elas se lembravam de minhas observações anteriores sobre o mesmo. As respostas recebidas, para o meu proprio desconforto, vieram confirmar que eu não estava criando caraminholas próprias de um ermitão...
Pois bem: encerrando este relato, lhes informo que o local aonde o criminoso havia ocultado o corpo da infeliz mulher, fica na mesma distancia e direção que a ave noturna me contou.
Como não tenho vocação para Zé Arigou, credito à sincronicidade o fato de ter como interlocutora a filha da vítima, que me falou, em primeira mão, de um evento macabro, um crime hediondo que os habitantes daqui sepultaram sob o manto gelado do esquecimento.
Terras de Olivença, meados do mês de Outubro de 2019
João Bosco