ALEGORIA DUMA MANHÃ QUASE PRIMAVERIL

Começara o dia no Passo de Torres num ambiente enfarruscado. O turvo céu, decerto mal dormido, troveja e relampeia o mau humor da véspera e assopra os ventos vindos do mar grosso. O sol ainda não abriu bem os olhos. Imagino que haja esquecido de colocar o costumeiro colírio, porque no ar anda solto que o astro-rei vive crises intermitentes de conjuntivite. A lua anda quieta, mercê de suas costumeiras alcovitices noturnas. O velho ranzinza deve estar amargando o último terçol, daí se compreender o humor alterado, aos circunstantes espalha (entre dentes) a fofoqueira Minguante, que é a mais ativa dos seus heterônimos lunares. Bem, ela pode tudo, porque é lindaça a pinguancha, e dança uma barbaridade, cochicha o vento por entre as lavadeiras das margens da Lagoa Morta. Toda essa conjuntura porque é setembro, pra saudar com estardalhaço a frangote Prima Vera, que anda de namoro com o anjo Gabriel. A Minguante não perdoa: dizem as boas línguas que vão repor as energias numa tal de Pérola da Lagoa, bem longe daqui, no caminho para Pelotas, lá onde escoam as águas de uma linda prenda a que chamam Felicidade. E eis que se abrem as torneiras e no entorno tudo fica escuro e sem graça. O Vento Sul, numa enseada soturna, murmureja num assovio desesperado, se encaracolando pras bandas das Furnas do Diamante, nas Três Torres. São Pedro, meio tonto pelo esquecimento que o Alemão Alzheimer tem lhe acometido, brada aos quatro cantos: onde esconderam o meu poncho e aquelas “sete léguas” de cano alto marcadas pelo fogo do último incêndio? Já estou encharcado e a gripe vai me pegar feio! Apesar do vento, tô aqui me refestelando na sarjeta. Êta, chuvinha boa! Aqui, no Rancho Passárgada, bem em frente à casa do Joaquim Moncks, um tal de Capitão da Esperança (o cara tem um nome comprido, mas é assim que gosta de ser chamado), diz Tanoeiro, um sapo grandote mais conhecido pelo apelido de Falsete. E então, pra completar a sarabanda da natureza, uns girinos meio grandotes mergulham numa poça recém-formada e ficam fazendo uma enorme algazarra. Então, de novo a crioula Minguante e sua língua de trapo: Ah, sabia que tinha qualquer coisa estranha! E se enrodilhando no espaço, arremete, numa voz gutural: era isso então, o velho sol da invernia, sonolento, parvo e meio desajeitado, esqueceu as torneiras abertas quando foi lavar a cara. Bem, são coisas de Santa Rosa de Lima, que chegou ontem com uma única bruaca, grávida dos ventos de final de agosto, bagunçando tudo, completa a fofoqueira Minguante, abrindo sua cara de vírgula sapeca. E então como fosse um lobisomem, ela, meio entortada de cima a baixo, em desalinho, se escafede fugindo dos raios da claridade. Um pouco depois, de novo, debruça-se do parapeito das nuvens uma forte chuva com granizo. Dava gosto de ver as pedrinhas de gelo se entranhando nos buracos. E novamente os girinos encarquilhados de frio, à sua moda, botavam a boca no mundo.

– Do livro inédito A VERTENTE INSENSATA, 2017/19.

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