SE EU FOSSE JORNALISTA EM 01.01.2019 - SOBRE A POSSE DE BOLSONARO

Certa vez li um artigo de Arnaldo Jabor onde ele expõe o quão penosa é profissão de um jornalista político. O tanto que atormenta estar todos os dias em contado direto com a podridão do mundo. Remoer o que há de mais sujo e noticiar. Lidar com toda a manipulação e desfaçatez. Ele disse estar cansado e que o Brasil e mundo podem prejudicar nossa saúde. É possível sentir a angústia em cada linha.

Há um tempo também cansei. Desde a última corrida presidencial. Tento preservar minha mente. Ficar no meu mundinho privado de fantasia. Prefiro a terra média à Praça dos Três Poderes. Valfenda ou Westeros em vez do Palácio dos Leões. Mil vezes a Final Fantasy dos meus RPGs e nenhuma vez política externa dos USA com o oriente médio. A guerra dos trezentos no Peloponeso e a jornada de Ulisses em vez da "guerra ao terror" patrocinada pela nação que mantém a civilidade no mundo. Qualquer solo e guitarra do Iron Maiden por 30 vezes seguidas, mas nem um minuto do show de marketing de um debate presidencial na TV aberta.

Prefiro o programa do mister M. Faz mais sentido. É o único local onde as pessoas gostam de ser enganados: um espetáculo de mágica.

Só que isso é como uma ferida ao céu da boca que cicatrizaria se você conseguisse parar de passar a língua. O incômodo inquieta em toda parte. É preciso dar vazão.

Ninguém é externo ao mundo que o cerca. Ser é ser no mundo. O falado "isentão" só existe como apelido irônico. Todo o conhecimento é necessariamente oblíquo, perspectivo. Mais recentemente Foucault chegou a essa conclusão, repetindo o óbvio. Mas o óbvio é como o sol: de tão claro ofusca. Vez por outra é preciso de óculos escuros.

Vou emprestar-lhe meus óculos. Partilhar as leituras que fiz a partir da percepção que tenho e os valores que construí nesse processo.

Em um universo paralelo, onde eu seja colunista político, certamente escreveria assim:

……………………..

Não acredito em Messias. Bolsonaros ou não. Não há farol dos povos. A palavra dos profetas está, literalmente, rabiscada e pichada na parede dos metrôs e paradas de ônibus, como denunciaram Simon & Garfunkel. Não existe grupo político heroico. É preciso se livrar dessa fantasia, porque dentro dela não há salvação. Se fazemos isso, como estamos fazendo há bastante tempo, nos perdemos entre monstros que a gente mesmo criou. Não faltam exemplos. No nosso caso, também não falta experiência própria. Mas cá estamos outra vez.

Sabe, gosto de quem não faz da Linguagem um exercício de poder. Todos deveriam ser simples. Comunicar. Tentar alcançar o maior número de limites cognitivos. Mas nem sempre se consegue. Nem sempre é possível. Queria mesmo que sensibilizasse quem sequer entende o que raios seja "limite cognitivo". Queria eu ser compreendido por todos ao transmitir o que é instrumentalização do nacionalismo e a campanha de terror e medo contra uma ideologia. Queria que todos escutassem Brecht quando diz que a cadela do fascismo está sempre no cio. Queria que a lição da crise econômica de 1929 e os eventos que levaram à ascensão dos regimes totalitários do século passado fosse absorvida de verdade na memória coletiva. Acontecendo agora de novo, como se fosse a primeira vez.

Mas não sou ingênuo, embora já tenha sido. Sei que a corrida política é uma disputa pelo poder. Nada de um diálogo civilizada, bonitinho, possível, com denominadores comuns alcançáveis. É naturalmente mentira, manipulação, imposição, demonstração de força, interesses, mesquinharia, acordos espúrios, cortinas de fumaça e fogo. Bastante fogo. Também não faltam exemplos e experiências próprias. Se um filho

esfaqueando o pai por ser “tirano” no senado romano há milênios parece muito longe, basta ver Arnon Mello desferindo tiros no plenário do Senado para dar fim a um opositor político. Há registros de áudio e tudo mais. E isso é natural em todos os espaços em que o poder é disputado – democraticamente ou não. O papado de Rodrigo Bórgia está aí a quem quiser pesquisar – dentro ou fora do direito canônico.

Igualmente não sou ingênuo a ponto de achar que o outro pode ser convencido ou entendido. Sei que toda militância é apaixonada, assim como todo amor é militante. É como disse Fernando Pessoa:

Como é por dentro outra pessoa?

Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo

Com que não há comunicação possível,

Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma senão da nossa;

As dos outros são olhares, são gestos, são palavras,

Com a suposição de qualquer semelhança no fundo.

Porém, mesmo as disputas pelo poder sendo escusas como são e o outro sendo um universo próprio, a vida é um processo de (res)significação. Revaloração e (re)construção. Mutação contínua. O próprio Marx não seria marxista como foi se estivesse hoje observando e escrevendo sobre a sociedade e a economia. Quantas pessoas choraram emocionadas na posse do Lula em 2002 e hoje são indiferentes a sua prisão...

As pessoas fazem esse processo de “autocriação” sozinhas. E só uma coisa move a engrenagem: a empatia. O que um jornalista ou outra pessoa pode fazer é provocar ou despertar empatia. Enquanto ela houver, a marcha continua. O problema real é quando a empatia perde o lugar a outra coisa; quando o vetor que aponta a direção é diferente.

A empatia nos faltou. O ódio tomou o seu lugar e assim a candidatura que ganhou a Presidência da República obteve a vitória – que representa bem mais do que uma cadeira de cúpula ocupada por um crápula.

Ao contrário das pessoas que fazem a si mesmas, os “vitoriosos” não são autossuficientes. Ninguém se elege. As pessoas são eleitas. Assim como nada significa; as coisas têm significado. Mas recuso a ver o resultado desse processo democrático como o espelho da maioria. Uma maioria que vê a face aberrante refletida a sua frente e sorri, como louca e atrasada que é. Se tivesse que admitir meu reflexo como sendo esse, esmurraria o vidro com as mão nuas, até que me cortasse os punhos e os nervos. Assim não sentiria nada a mais.

Deprimo quando vejo a “franqueza crua” do capitão diminuir mulheres; rejeitar LGBTs, quilombolas; zombar das ossadas, da dor e do luto de familiares dos mortos perseguidos no regime militar; fazer como somenos políticas públicas de minoria; incitar o ódio; acovarda-se ao debate público. Desespero ao aplaudirem em

nome de Deus a queda da “presidência corrupta”, com o voto dado em homenagem ao torturador que tanto inspira aquele que defenderá a ordem e acabará com o crime.

Perco minha paz com o show de horrores e hipocrisia dessa posse em nome das minorias com discurso em Libras. Tão inclusiva quanto uma classe universitária sem cotas…. Tão dissimulado… Tão insicero… A (im)postura apática dele atrás dela é o que mais espanta, logo após a trilha sonora embalada pelos aplausos das pessoas de bem que o puseram lá. Não suporto mais as notícias; as (re)vistas! Queria

poder crer que vivemos uma cena mal cortada.

Mesmo o nojo que tive ao ver a família de Eduardo Campos usar o cadáver do pai para apoiar Aécio Neves foi menor; até a decepção com a venda que Lula fez da própria alma à Sarney e da vice-presidência cedida ao PMDB foi inferior.

Essas eleições me fizeram perder muito. Mais do que sou capaz de suportar. Perdi fraternidade, afetos, admirações, até o amor da minha vida foi tirado de mim. Minha esperança.

Mas, apesar da falta de empatia, isso tudo de me fez ressignificar as coisas. Fez com que eu mudasse um valor que há muito tempo nutria comigo e que servia de vislumbre a um futuro político ideal do meu meio. Esse texto serve, fundamentalmente, para transmitir essa reflexão.

Pois bem. Uma criança com 10 (dez) anos de idade, hoje, já foi submetida a mais informações do que um imperador no auge da civilização romana durante toda a sua vida. A urgência febril que a tecnologia impõe em tudo sobrecarrega as pessoas com informações. O processo de esquecimento é cada vez mais predatório por conta desse excesso. É tudo, literalmente, papel para embrulhar o peixe do mercado no dia seguinte, inclusive as coisas que a gente experimenta durante as corridas eleitorais.

A Clarice, na obra incrível que chamou “A paixão segundo G.H.”, narra a estória de uma mulher que em uma cena aparentemente banal, limpando o seu apartamento, depara-se com uma barata e então a esmaga. Porém, em um surto de introspecção decide degustar o inseto morto. No lugar do nojo, a pasta branca experimentada despertou na mulher uma revelação; a fez refletir fora do padrão civilizado; aproximou-a de um estado de espírito longe da rotina, mais próxima do humano em natureza e, desse modo, (trans)figurando uma visão de mundo para além do que é comum.

O vislumbre de uma maturidade política ideal que guardava comigo era de que o debate e a experiência em cada eleição fossem baratas para que a gente pudesse degustar, não o papel que embrulha peixe na feira. Que a gente passasse a discutir nos anos ímpares sobre o que andam fazendo no planalto. Afastar de vez qualquer coisa

similar ao que foi a “empolgação” e “comoção nacional” com a abolição da escravatura ou a independência da República.

Por minha vida inteira assim o foi. E talvez seja o senso comum de quem é democrata. E continuou sendo o meu. Até 01.01.2019. Se fosse eu colunista político nesse dia, mudaria de ideia.Completamente. Porque perceberia que o sonho de outrora é um pesadelo. Se esses momentos forem baratas e não papel para embrulhar peixe, a paz dos anos ímpares iria embora. Perderia todos os amores, toda fraternidade. Mais do que uma guerra fria entre nações estrangeiras. Uma guerra ideológica quente em casa, na rua, no instagram, no facebook, no twitter. O desassossego eterno. Imagine um mundo com a vida de cada um mergulhada no tormento de ser jornalista político todos

os dias; sendo como estou agora. Minha nossa…

Queria ser como Florbela. Transformar meus tormentos em poesia. Reduzir a versos belos essas dores, como a tragédia consegue ser na voz dela. Ah, que bela antologia essa isso tudo renderia. Material de incômodo não falta.

Mas, não sou a poetisa eleita; aquela que no mundo anda perdida. Felizmente, também não sou jornalista. Agradeço aos que são – se sacrificam muito pelo próximo. Pois se eu fosse, 01.01.2019 marcaria o fim, a minha rendição final. Da minha fé nas poucas coisas onde ela ainda existe e da minha carreira. Penduraria a chuteira e assumiria a derrota, cabisbaixo.

Só guardo comigo um desejo, apesar da repetição da história. Não mais que as corridas eleitorais sejam baratas a serem digeridas.

Que não vo(l)temos assim novamente; que sobrevivamos por tê-lo feito agora.

11.01.2019.

Alexander Barbosa
Enviado por Alexander Barbosa em 01/09/2019
Código do texto: T6734411
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