Pulso Bretão
Quando vimos as cenas na televisão ficamos a raciocinar e a exercer a capacidade de refletir e tentar compreender como se dá o uso da simulação e da dissimulação no âmbito judiciário, já que no significado jurídico se trata de declaração fictícia da vontade de uma ou ambas as partes, visando fugir de determinado imperativo legal. Mas, e se for praticado pela parte que deveria ser independente?
O juiz está em audiência de interrogatório com o réu ex-governante acusado de corrupção. O juiz é um sujeito durão. Mostra isso no seu semblante, nas suas manifestações, nas suas decisões e na maneira como come pipoca no cinema. O seu empenho é ferrenho em ser considerado o ícone maior da galeria de heróis vingadores, objetos da contemplação pelo povo neste momento da história nacional. Missão difícil, pois colegas seus partiram bem antes e estão muito à frente na liderança da corrida.
Mas ele não vai desistir e para isso usa golpes bem mais duros, bem mais contundentes e assim quer ser conhecido – o vingador mais implacável. Exagera bastante nas penadas, o que lhe confere uma certa temperança vingativa e de mesquinhez.
Tal qual Floriano Peixoto, o “Marechal de Ferro” ditador da primeira república, o juiz, que também que ser vinculado ao mesmo elemento da Tabela Periódica, procura mostrar personalidade erigida no moralismo radical e regenerador. Apresenta-se como o guerreiro forte e austero que, imbuído de bons propósitos, conseguirá resgatar a nação de suas mazelas mais profundas. Encaixa, em consonância com seus pares, um mito recorrente na história nacional – o do salvador da pátria. É o embaixador do clima de ódio contra o ex-lider denunciado.
O interrogatório segue no seu curso e, a entremear as repostas demandadas, o réu acaba por falar duas ou três verdades, não importantes, antes desnecessárias, mas que fazem o juiz sentir o golpe ultrajante. A resposta é vigorosa e imediata, como um herói vingador não deve deixar passar. Seguido à descompostura, o juiz determina cinco minutos de intervalo na audiência.
Na volta do recreio, os acontecimentos se deram sob uma atmosfera estranha, algo teatral no gestual. Não há de se falar exatamente em engodo, mas a forma como a dinâmica de petições e despachos foi exposta, no mínimo sugeriu dúvida ao bom senso. Olhos atentos captaram a possibilidade de ação daquilo que não é como se manifesta, então um exame da qualidade do que se pode acreditar foi projetado para entender no que o senso comum das pessoas tem confiança como verdadeiro.
O “Teste de Credibilidade”, pois, em seguida, sobre duas versões.
Versão A. As pessoas saem do recinto, cada um vai tratar da sua ida ao toalete, tomar uma água e um café, tratar de um ou dois tópicos rápidos, espairecer um pouco, ou não, e retornar à audiência. O representante do Ministério Público faz, então, solicitação ao juízo de que o réu seja transferido para um presídio federal de segurança máxima, extremada medida, devido à flagrante evidência de que o estabelecimento atual não controla as informações que o réu preso troca com o ambiente externo. O juiz, ágil decisor, nada de tempo necessário pra refletir, concorda com a petição e assim defere.
Versão B. As pessoas saem do recinto e, além de cada um tratar de suas necessidades, o juiz, encolerizado pela afronta do réu, que ele entendeu como ameaça subliminar, intenta aplicar-lhe punição. Chama o procurador do Ministério Público e ordena que ele lhe peça a transferência do réu preso para um presídio federal de segurança máxima, devido à flagrante evidência de que o estabelecimento atual não controla as informações que o réu preso troca com o ambiente externo. Assim se combina, assim se faz e assim se decide.
Diante das versões, deste modo acima definidas, o instituto de pesquisa benchmark, o mais reconhecido e confiável para assuntos judiciários – o DataGaleria – sai em campo para saber do distinto público quais as versões é a crível, para além de uma verossimilhança razoável. O resultado, compilado pelo método da cognição sumária, traz a seguinte curva de distribuição: versão B = 98%, versão A = 1%, e 1% não quiseram responder com receio da chefia.
Foi interessante observar isto, pois a versão A é a oficial, a explicação declarada pela autoridade. O confronto com a noção do senso comum faz pensar sobre qualquer divergência mais aparente. Hoje em dia, o chamado “senso comum” vem do empirismo, por quanto as pessoas acreditam no que os sentidos lhes comunicam. O resultado da pesquisa benchmark não deixa dúvidas, pois a versão B ganharia o Prêmio Lux, quando algo é dado como certo por nove entre dez estrelas do cinema.
A imprensa – o pior é o que não surpreende – é que deixou a desejar no episódio. Podemos entendê-la como a mídia de noticiar o que ocorre, então se o juiz diz que foi assim assado, assim assado será informado. Entretanto, pergunta-se onde ficou a capacidade de reflexão e de construção da opinião independente. Hoje, a julgar pelos telejornais mais abrangentes do país, o grande papel é o do jornalismo policial. Em segundo lugar, a acompanhar o clima de desconfiança nacional, vem o jornalismo investigativo. Tudo é investigação. Pobre território. Gostaríamos de ler o que vem das cabeças pensantes – mas onde estão?
Todavia, é algo mais entranhado e encoberto o que parece iminente desvendar-se. O ponto central que reverbera é o papel que o Judiciário propõe expor. Qual é o seu problema com a verdade? Por que essa necessidade de dissimular as verdadeiras intenções? Medo da ilegalidade? Há sempre de tomar decisões revestidas de astúcia enganosa, da perfídia a dar as costas ao que a faculdade de julgar deveria ter de mais sagrado e sem concessões: a verdade. Vemos isso o tempo todo: na decretação de prisões cautelares, nos despachos sobre os mais distintos requerimentos, nas sentenças condenatórias. Por quê? Qual é o seu problema?
Busca-se incessantemente, para sua própria validação, o apoio da “sociedade”, da “opinião pública”, da “voz das ruas”, do “clamor social”, da “ordem pública”, esses coletivos abstratos em nome dos quais autorizam-se quaisquer ações punitivas. O coletivo é uma ideia muito perigosa. Em nome do coletivo, o indivíduo, o real, sempre tem de ser sacrificado. Pegue-se qualquer palavra que represente coletividade e o indivíduo pode ser preso e condenado.
Ao contrário dos movimentos humanísticos mais elevados da história do homem, que buscaram sempre a verdade, não a vitória, o Judiciário Tupiniquim contemporâneo, nesta jovem geração tem na vitória o seu prêmio, mesmo à custa da vilipendiada e hoje desnecessária verdade. Os juízes da atualidade – modernos – operam no espectro da sua certeza íntima. Sabe-se que a certeza, para ser verdade, precisa de fatos, de provas; mas esta espécie de evidência fática e atestatória não é mais imprescindível nos preceitos penais. Os magistrados ainda estão com aquela arrogância da juventude e estão com suas consciências muito acima de qualquer dúvida razoável.
É por isso que se entende o empenho e o esforço despendido por uma porção da magistratura e do Ministério Público contra qualquer melhor definição das regras de conduta da lei de abuso de autoridade. Não é, como eles propalam, a defesa da liberdade de resoluções e determinações, e mais o receio de serem tolhidos na tomada de decisões. Nesta campanha, isto também é subterfúgio e hipocrisia. É a consciência, que fala mais alto, de que estão a usurpar na aplicação da lei, de que estão, aliás, a cometer crime na interpretação das normas: o crime de hermenêutica.
No caso específico em foco, o passado de procurador da república do juiz tuiteiro – incauto, que escorrega nas sua próprias cascas de banana –, candidato a célebre do Facebook, explica muito. Ele também é, portanto, formado na arte de compor “fatos” e “evidências” com pitadas de omissões, distorções e mentiras, e na construção de lógicas dedutivas irracionais.
Se, para uma simples decisão de transferência de um preso, há que se produzir um faz-de-conta de petições-relâmpago e acolhimentos à velocidade da luz, imagina-se na hora de prolatar sentenças só compatíveis a crime de genocídio e contra a humanidade.
Certamente é a estrita necessidade do projeto despótico totalitário em exibir o seu pulso: a energia demonstrada no exercício da autoridade.