CORPO FECHADO

CORPO FECHADO

*Rangel Alves da Costa

A pessoa vive de corpo aberto, e sempre aberto ao mal, assim diz a crendice popular, principalmente pela voz de curandeiros, rezadores, benzedeiras, iniciados e cultuadores das ervas, das raízes, das pedras e do sobrenatural. E tão aberto é o corpo que a pessoa pode, sem saber, deixar que todo mal entre por sua porta sem que se dê conta do perigo.

Segundo dizem, um simples vento chegado em hora errada pode ocasionar desde o entortamento da boca até a morte inesperada. Basta um mau olhado para que tudo comece a desandar. Basta um descuido na fé ou na crença para que se veja tomada por atrasos e enfermidades. Por isso mesmo tão necessário fechar o corpo para que o mal dele não se apodere e transforme a força em um nada.

Mas como fechar o corpo ante os perigos do mundo, perante a maldade humana, diante dos acasos negativos da vida, quando na presença do desconhecido? Segundo diz a sabedoria matuta, há muitas maneiras de colocar cadeado na porta do corpo e impedir que o mal a tudo ameace ou tome conta. A pessoa pode se valer da reza, do benzimento, da oração forte, do chá encantado, da infusão milagrosa, do toque da pedra miraculosa sobre o corpo, do segredo jamais revelado pelos iniciados.

Não negam, contudo, que o principal cadeado da alma está na fé, na sagrada devoção, na obediência aos ensinamentos, no respeito a Deus, aos anjos e santos. Dificilmente um mal avança por uma porta de fé. Não há passagem do mal para quem vive protegido por Nosso Senhor Jesus Cristo, para quem um céu no oratório, para quem faz da igreja um lar e a religião como relicário maior. Nenhum vento mal entra pela boca que ora nem se aproxima de uma vela acesa. Ainda assim não descartam outras formas de fechar o corpo.

No terreiro, no quarto escuro, no quintal, por cima do tamborete, em quaisquer destes lugares há um cenário ideal para o ritual tanto da reza, do afastamento dos malefícios da alma e da cura de enfermidades, como para o fechamento do corpo. Mãos, palavras, toques, olhares, folhas, raízes, junção de objetos pessoais e até encantamentos, tudo serve para que o cadeado da proteção se entrelace ao indivíduo. E quando bem feito não há mal que consiga romper o segredo.

Pelos sertões ainda existe essa força. Os antigos não abdicaram de sua sabedoria de cura e proteção. No passado havia uma verdadeira profusão de rezadores, curandeiros, iniciados e trancadores de cadeados. Uma gente que mesmo distante fazia uma serpente ficar aprisionada na beira da estrada. Uma gente que prendia uma caça na loca em que ela estivesse. Uma gente que olhava no olho do outro e dizia o mal que lhe estava acometendo. Uma gente que passava um ramo sobre a cabeça do fragilizado e logo este se sentia refeito na vida. Uma gente que murmurava algumas palavras e verdadeiros milagres aconteciam.

Da boca e das mãos da sabedoria antiga, e ainda cultuada por muitos lugares, surgindo verdadeiras lições. E certamente dizendo que não se deve colocar o pé adiante da porta sem antes fazer o sinal da cruz. Não há risco maior que abrir a porta quando a ventania parece ter voz. Perigoso demais entrar numa curva da estrada sem se benzer e sem pedir permissão aos santos. Em rastro desconhecido não se pisa, evite passar onde a coruja está e o canto do Rasga-Mortalha parece chamar.

Deve-se sempre evitar os quebrantos e as moléstias do ar. Um chá forte purifica a alma, mas nada como se valer da velha sabedoria. Um banho de sal grosso, um rosário bento dormido na lua cheia, uma peça de roupa lavada em água corrente de riacho, uma folha milagrosa colocada detrás da orelha, um dente de veado levado no bolso, uma lasca de madeira de cruz, um frasquinho de água benta no bolso. Mas, e acima de tudo, não deixar que o corpo se veja à mercê do tempo ruim. Vento ruim é igual a punhal de ponta afiada, é pior que muita coisa que fere e faz sangrar, e assim porque sua ferida maior não se mostra enquanto definha e até dizima a pessoa.

Há, pois, em cima desse chão e embaixo dessa lua, toda uma visão ritualística para, através do fechamento do corpo, da cura de enfermidades e do soerguimento daqueles já desvalidos, uma demonstração de que a sabedoria popular sempre serviu como medicina da crença e como remédio para os males. E, muitas vezes, nem é preciso rezar ou benzer, passar chá ou qualquer infusão, bastando que as mãos, as bocas e os olhares operem milagres. E estes acreditados pelo próprio povo, cuja cura nasce da própria crença.

Como dizia o Velho da Serra, gente de corpo aberto é ninguém. Mas também não se fecha aquilo que não acredita na proteção. Não adianta levar um rosário de cabeça de alho sobre o corpo se a pessoa não reconhece o seu poder de afastamento de todo o mal. E, por via de dúvidas, é melhor se benzer agora. Um vento ruim pode estar caçando uma brecha.

Escritor

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