E a vida vai passando
Sentado eu estava, e sentado fiquei. Tentei levantar para fugir de mim, mas não consegui. Eu me obriguei a ficar ali a me escutar, pois eu tinha muito a me falar. Todos os dias algo me incomoda, me atormenta a mente, me faz ficar inquieto e com uma disposição terrível para entrar em ação, e minimizar o tempo perdido. E é sobre isso que eu queria me falar, mais uma vez, como todos os dias, quando sempre me pego a me advertir, criticar, cutucar, ferir e relembrar. Relembrar o quê? Me pergunto agora, e agora mesmo nesse momento, não lembro mesmo do que eu sempre me pego a relembrar.
Mas o outro sabe como sou esperto e me fez lembrar, pois isso é só mais um ardil meu, para me levantar e fugir do que eu tenho para me falar. Então senta que eu te escuto! Opa! Nesse caso, é “senta que eu te falo”, porque é o outro que tá me prendendo sentado para ouvi-lo. Nossa! Às vezes me irrito comigo mesmo, e dá uma vontade de voltar a fita e começar tudo de novo, lá naquele episódio em que eu contava com 17 anos. Ah! Era sobre isso que eu queria me falar. Pois então, sou todo ouvidos, afinal esse tempo foi maravilhoso, acho até que nem existiu, que foi apenas um sonho meu, de tão mágico; foi na época do “walkman”, do final do vinil, começo do CD-ROM, ainda usava calças “boca de sino” e cabelo “black power”, que eu curtia pra caramba. Lindo é o que eu posso dizer. Então caio na nostalgia louca que sempre me assola, e me dá um misto de tristeza, alegria, dor, plenitude, felicidade e, frustração por ter perdido. Perdido o quê? Eu não falei que talvez aquilo tudo fosse um sonho? Então, só se perde aquilo que se teve, e meu “eu” continua na minha orelha, dizendo que isso é só o começo, isso foi só para ilustrar a cena, o momento cronológico.
Perdi o fio da meada, por ficar me dando atenção, pois lembro que tive vontade de voltar a fita, e não sei se era a fita do vídeo cassete ou a fita K-7 do gravador de mão; ou era figura de linguagem para dizer que eu tenho vontade de começar tudo de novo? E por quê, às vezes eu tenho essa vontade? E todos que nasceram no século passado e ainda estão vivos, também não têm essa mesma vontade? Então meu amigo, eu sou apenas mais um; mas tudo bem, vamos lá! Me conta, o que eu tenho pra me contar desta vez, que é tão importante e não pode esperar?
- Quero cantar uma música; continue sentado e ouça, e veja se depois dela, ainda vai querer continuar sentado:
“E a vida vai passando. A vida passa lá fora, e aqui também.
O vento sopra lá fora e aqui ele não vem.
Aqui eu fico só comigo, e comigo mesmo eu falo
Não a vejo passar porque não vejo o vento
Mas a sinto por que, de repente sinto frio
Um frio curto e pequeno me lembra da vida
Que lá fora ela corre e com ela, João e Maria
Correndo para passar, não sei o quê ou quem
Só sei que correm com ela ou com o vento
E eu aqui comigo falando sobre a vida.
Mas a vida tá lá fora, passando
E passando aqui por cima, assobiando
E me dou conta que ela já passou
E levou-me tantas coisas e não dei conta
E me pergunto sobre meus sonhos
Onde estão os meus sonhos?
E ela sussurra dizendo que passou
E eu não fui, não corri junto com João e Maria
E agora eles se foram e lá estão com ela
Sem se darem conta de quando e como
Mas não pensaram, simplesmente acompanharam
Porque todos a acompanham, não a questionam
Eu questionei e aqui fiquei e ela não fez conta.
Me deixou por minha conta, e por minha conta me deixou
Agora não sei se vou lá fora seguir também
Mas acho que não dá mais tempo.
Também pra quê seguir, agora depois de tanto tempo?
E continuo falando comigo sobre a vida
E a vida vai passando lá fora e eu aqui,
Passando a vida falando comigo”
Sentado eu estava, e sentado ficaria, não fosse a providencial aparição de alguém, também falando sobre a vida, vida que passa aqui dentro e passa lá fora. Ela abanou o rabo, soltou um miado, e fomos os três viver a vida lá fora.