Esta crônica não tem nada demais
As portas do trem abriram, as pessoas correram. Sentei-me no chão, como de costume, que em volta sempre cabem mais umas seis pessoas, mais ou menos assim, uma de frente às outras, intercalando os pés para conseguirem dobrar seus joelhos, e meus joelhos dóem, tendinite, mas isso parece-me melhor do que seguir o percurso todo em pé. Ainda não disse, mas saiba, essa crônica não tem nada demais. Os vendedores ambulantes passam gritando, às vezes chutam nossos pés ou passam as mercadorias em nossos rostos. Ninguém se importa, estamos acostumados.
Gosto de escrever e já li de muita coisa, há autores criativos por aí... Para chegar a tanto, fico espiando os cantos, ouvindo as borrachas dos vãos do trem rangendo, observando o quanto nossos corpos balançam e o quão raro é ver alguém com brilho nos olhos por aqui. Ouço alguns pedaços de diálogos avulsos, que poderiam me inspirar, mas antes que eu me esqueça, essa crônica não tem nada demais.
Vejo todos os dias pela manhã, quando não perco o horário, uma senhora muito revoltada com toda essa miséria, com toda essa corrupção e injustiça que vivemos aqui, ela sempre refere-se aos "engravatados" como se fossem demônios, diz ter mais de setenta anos, o que de fato parece ter, mas a aposentadoria... Vai toda para ajudar os filhos, aí vem trabalhar, sei lá com o quê, mas segue adentrando o trem sempre às 6h50, sempre falando alto, sempre esparramando reclames e aplicando anedotas, jogando tudo às paredes, coitada! A velha não percebe que somos bonecos, que estamos cansados e a revolta é abafada pela desesperança, as contas são mais importantes, aquele diploma também...
A senhora é irritante! Ninguém dá ouvidos, mas nunca se cansa, parece essa crônica, não tem nada demais.