ANOS 60

Anos 60, tarde quente. O bonde chegava rangendo. Subia e sentava no banco duro de madeira. O motorneiro parecia ter prazer de arrancar aos solavancos. Em poucos minutos, o Colégio Júlio de Castilhos, moderno, apinhado de gente, um desafio do futuro. Aulas interessantes, outras bem menos, piadas, rebuliço, expulsões de classe, reuniões políticas, debates literários, grêmio estudantil fervilhando sempre. Colegas bonitas, ensaios para o jogral, clube de cinema, panfletos, exposições, discursos, poesia, namoricos na surdina, grandes conchavos para as disputas dos grêmios e das passeatas corajosas, que sacudiam a vida pacata da Capital.

Depois, outro bonde, a volta a casa, os sons costumeiros da grande família, confusão, pequenas brigas, rituais a cumprir, um pouco de estudo com a televisão aos berros e os irmãos agitando, saída noturna – religiosa, promissora, como respirar. Na TV preto e branco: Jovem Guarda, O Fino da Bossa, Tele-Catch, Família Trapo, Hebe, Moacir Franco Show, Programa Flávio Cavalcanti, novelas como O Direito de Nascer e Beto Rockfeller. Morando no centro, a caminhada curta até a Rua da Praia, na Praça da Alfândega, e a espera pelos conhecidos que vinham chegando com as suas expectativas e novidades. Grandes filas para a sessão das oito, depois a das dez, nos tradicionais e imorredouros cinemas no coração pulsante da urbe: Ópera, Imperial, Guarani, Cacique, Rex. Havia ainda a rebarba do Cine Vitória, na Andrade Neves com a Borges, sem falar naqueles um pouco mais distantes, como Capitólio, Marabá e Carlos Gomes, por exemplo, que engrandeciam Porto Alegre e o centro da cidade. Espera pela saída para ver as gurias, novos encontros, desejos disfarçados e olhares compridos, moças muito bonitas, gente interessante, bem vestida. Um sonho vago de ter namorada e algum recurso material. Discussões políticas e literárias infindáveis, "nouvelle vague", bossa nova, Beatles, Roberto, Erasmo e a turma do ié-ié-ié, teatro moderno, Vinícius de Morais, Drumond, João Cabral, Fernando Pessoa, Neruda, Garcia Llorca, Sartre, Mounier, Marx e Engels, para variar. Como ninguém era de ferro, um sanduíche de pernil de porco no Matheus, com mostarda, quando os pilas na carteira permitiam. Piadas, histórias de sinuca e de malandros, confusões da véspera no “Fedor”, com os personagens da época, lá no bairro Bonfim, onde começava a reinar o cachorro-quente do Zé do Passaporte ("Passaporte para o Inferno") e sua carrocinha de fabricar atrações e dinheiro. Carros imponentes, cobiçados, passando lentamente pela Rua da Praia, contornando a praça, detendo-se na banca de revistas da esquina. Muito poucos conhecidos “motorizados”, mas de prestígio, geralmente distantes. Novos companheiros chegando e apresentando futuros amigos. De repente, uma ideia ou um comando: lá na Cristóvão tem chope a cem pilas no Renânia. Todos ao bonde e, se fosse muito tarde, a pé, atravessando a intimidade acolhedora da cidade. No barzinho escondido e acanhado, mesas cheias, gargalhadas, cheiro forte de cerveja e de sanduíche aberto com molho escuro, gostoso, de lombinho de porco. Dinheiro muito curto, quando havia: era preciso sumir com as bolachas de chope, escondendo-as atrás da caixa da descarga d'água no banheiro ou jogando-as pela janela basculante para equilibrar a conta. Bebíamos a madrugada, o sonho, a vida e a quietude da cidade dominada.