Amor e canivetes

Encontrei esta postagem no facebook, de minha amiga Érika Cardoso: “Quando vejo nomes de casais talhados em árvores, não acho ‘meigo’. Acho muito estranho que levem facas a um encontro amoroso!!!”

O espanto de minha amiga, marcado pelos três pontos de exclamação... isso despertou em mim algumas lembranças e algumas considerações sobre o passado, o presente e o às vezes estranho mundo dos homens, esses seres que carregam consigo estigmas profundos de bondades e maldades em iguais proporções, a entrechocar-se sempre com o tal mundo das mulheres, também constituído igualmente de bondades e maldades, mas de teores completamente diversos. Talvez seja estranho, hoje, falar em diferenças entre esses dois mundos, quando o chamado “politicamente correto” pespega o rótulo de machismo a qualquer pensamento que saia um pouco de uma certa curva. E é dessa curva que eu vou sair um pouco, para tentar desvendar o “mistério das facas em encontros de casais”.

Uma breve história dos anos oitenta, quando lecionava em um grande cursinho de São Paulo: uma manhã, na sala dos professores, ao redor de uma grande mesa, no intervalo das aulas, batendo papo e tomando café, não me lembro por que motivo, saquei de minha bolsa de materiais escolares um canivete, daqueles canivetes suíços, de mil e uma utilidades, mas que não prestam para nada. Para minha surpresa, dos treze ou quatorze professores, todos homens, que ali estavam, quase todos fizeram o mesmo, para divertimento e risos gerais.

Ninguém sabia explicar por que carregava seu canivete. Mas praticamente todos tinham um. Talvez herança de tempos em que portar um canivete era questão quase de sobrevivência: nos tempos antigos, lembro meu avô a picar fumo – com seu canivete, a descascar uma laranja – com seu canivete... Nem vou listar todas as utilidades do famigerado canivete, portado por praticamente todos os homens. O canivete podia até, em momentos de briga e ódio, servir como arma mortal, mas não era exatamente visto como arma, de defesa ou de ataque, era um instrumento de utilidade prática, de uso diário. E quando casais enamorados realmente se enamoravam, o namoro quase sempre escondido, pelo menos em seu início, quase sempre era marcado por encontros em jardins, em bosques, em parques, que os havia em grande quantidade por aí, talvez justamente para o idílio dos pares que se formavam às escondidas de pais furibundos e da moral rígida e hipócrita da época. Ocasião em que, entre juras de amor e beijos roubados – expressão apenas literária, já que ninguém acredita em sã consciência que se roubassem beijos, melhor seria dizer beijos trocados – o ritual amoroso praticamente estipulava que os casais marcassem na árvore mais próxima a data daquele amor e as juras que deveriam crescer ou permanecer enquanto durasse aquele tronco. Então, aí estava a maior e talvez a mais nobre prestação de serviço do canivete: nem se pensava em ataques ou crimes seriais, como hoje as crônicas policiais andam cheias, a justificar o receio de minha amiga Érika.

Não, não estou dizendo que os homens de antanho (sempre imaginei usar essa palavra estranha e fora de moda, numa crônica passadista) fossem mais gentis ou menos violentos, que crimes hediondos havia, sim, e muitos eram cometidos atrozmente contra indefesas mulheres – namoradas, noivas, esposas, filhas – pela sempre presente fúria de homens machistas e perversos, em muitos casos, no chamado sacrossanto recesso do lar. Mas o coração talhado na árvore – a canivete – não devia fazer parte desses temores, era apenas um momento em que essa fúria estava mitigada e transformada em símbolo de amor, de desejo, de promessas, mesmo que tudo isso se esfumaçasse depois, na metamorfose do romance e da paixão na atroz supremacia do marido macho senhor da vida e da morte de suas mulheres.

Hoje, que os canivetes estão fora de moda, que todos portam telefones celulares e outros badulaques, incluindo armas de fogo, realmente estranharia encontrar recém-talhado em algum tronco de parque o velho coração trespassado por uma flecha, com o nome dos enamorados e a data. As redes sociais, às vezes de forma cruel – quando fotos vazadas por pura maldade cumprem o papel de perpetuar uma vingança – estão aí, como árvores sem folhas, sem sombras, sem romantismo, para marcar de forma não tão indelével o encontro dos enamorados. Um canivete, ou uma faca, ou um punhal, seriam, sim, armas bastante suspeitas num encontro amoroso.

14.8.2017