Akai Ito

Da saleta do apartamento 405 ouvia-se um incessante “Dois passos para frente, dois para trás.”

“Calma, meu Bem! Devagar... Isso aqui é básico. É o feijão com arroz da dança.”

É...

Em 2016 eles acreditaram no falacioso adágio popular pregador de que os “opostos se atraem”. 3 anos após o golpe fatal do destino, o relacionamento já se encontrava em estado crítico na UTI, respirando através de aparelhos.

Naquele momento, pensamentos diversos se amontoavam pelas sinapses cerebrais do jovem casal, mas o foco ali era outro – A moça cacheada dizia para si que a dança era salvadora, e acreditava piamente no que dizia. A fé não lhe faltava.

“Vamos lá, novamente... Dois passos para frente, dois passos para trás... eu sei que você consegue.”

Riam vagarosamente. Ela com um pouco mais de intensidade que ele.

Numa pausa para o breve descanso, sentados na cama a uma distância de três icebergs, a voz mais grave da relação soltou, em tom pesaroso - “É, acho não consigo”.

Olhos no chão, como os de quem procurava algo perdido entre o carpete, mas sem saber exatamente o quê.

A outra parte seguia imbatível. Havia nela uma leveza persistente. Nos pés, no corpo, no olhar. A personificação do haver no sentido de existir. E existia. Ela existia.

Enquanto ele, ah! Ele só sabia que dançar era um verbo – e sabia muito mal!

“Você precisa me acompanhar, vamos lá, não é tão difícil assim.”

Tentaram mais uma vez, falhando na missão. “Dançar” definitivamente não era praia do rapaz.

“Olha, Carlos. A vida é como uma dança. A gente precisa aprender a sincronizar, a seguir o ritmo. Sente o ritmo, Carlos. Vamos lá! Dois passos para fren...”

“Eu não consigo.” – Soltando agora as mãos físicas – as da alma não se tocavam há tempos.

“Não me leve a mal, eu não consigo.”

Vivenciando o ápice da coragem, pela primeira vez nos últimos dois anos de declínio afetivo, encheu-se de fôlego e não adiou a partida. Mochila nas costas, e antes mesmo que ela pudesse intervir, soltou um destemido “por favor, eu detesto dançar”, abrindo a porta do 405 e avistando a liberdade de um horizonte tão eminente e, ao mesmo tempo, tão ínfimo.

Akai Ito: O Fio Vermelho do Destino acabara de partir.

Concomitantemente, entre as paredes do 405, a máquina de monitoramento cardíaco soltava aquele “piiiiiiiii” angustiante. Óbito. A dança desfibriladora não conseguiu reanimar o paciente. Não naquela mesma e fadada unidade hospitalar.

Em modo ambiente, som continuava ligado. Decretara, por hora, a ausência de toda e qualquer expressividade corporal. Era preciso (re)aprender o conceito do solo, do individual.

Não houve tempo para tristezas e lamentações profundas. "Carpe Diem, Horácio!"

Ressignificou a dança e aprendeu a se ressignificar tempos depois.

Não se sabe ao certo quem dançou e quem “dançou” no jogo das cadeiras. Agora o “dois passos para frente” faziam mais sentido que os “dois passos para trás”. Inclusive, para trás agora só o “en dehors”, aprendido ontem, na sua segunda aula de ballet contemporâneo.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 12/05/2019
Reeditado em 12/05/2019
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