DOIS VERSOS E UM TIRO NO CORAÇÃO

DOIS VERSOS E UM TIRO NO CORAÇÃO

*Rangel Alves da Costa

Antes mesmo do anoitecer e a sala já estava na semiescuridão. Um cheiro forte de incenso pelo ar. Uma garrafa de vinho vazia e outra de uísque pela metade.

A escuridão aumentando, mas bastava somente apertar o interruptor e chamar a luz. Preferiu acender uma velha lamparina, colocá-la num canto da mesa, com a intenção de escrever alguns versos.

Tal intenção era como tempo nublado que nunca chove. Mais de trinta páginas de aderno já rasgadas e sem que uma só estrofe fosse completada. A cada folha rasgada um gole, a ira, a aflição.

Quanto mais a noite avançava mais ele tentava expressar sua agonia através de versos. Sim, queria falar de amor, mas não do amor amoroso, de paixão compartilhada, mas de um amor perverso e devastador.

Sim, um amor perverso e devastador. Amor punhal afiado, amor brasa chamejante, amor espinho pontudo no pé e na alma, amor tão desejado como amor e transformado em desilusão e sofrimento.

Mas como escrever sobre um amor assim, principalmente em versos, em poesia? Indagava-se enquanto rasgava retratos, bilhetes, todo o que estivesse por perto e fizesse recordar a causa de toda aquela angústia.

A noite rompeu a madrugada, a aurora chegou, e nenhuma poesia inteira saiu. Ao amanhecer, com os sopros entrando pela janela, dois versos se sobressaíam, como se desejassem ser lidos.

E que doçura tornada em fel

um purgatório no que era céu

e eu, um ser de Dante ao dissabor

na fogueira viva por um amor

e após beber do fogo que a tudo arde

ainda ter que queimar na chama da saudade.

E logo adiante outro verso, em papel amassado e quase ilegível, mas igualmente clamando para ser lido:

No cume do penhasco onde eu estava

mirando adiante o desejo que brotava

eis que o abutre avançou sobre mim

e dizendo que aquele era o meu fim

pela ilusão de um amor impossível demais

e do cume lançado para o nunca mais.

E ele lançado ao chão, um copo espatifado adiante, nos olhos abertos uma profunda tristeza. De sua boca um fio de sangue já sem escorrer. Uma arma deitada na mão e um tiro no coração.

Escritor

blograngel-sertao.blogspot.com