Estupidamente Gelada!

“...ele não sabe quando parar…”, minha mãe sempre arrumava um jeito de implicar com o meu tio, por mais que apenas houvesse ali uma preocupação de irmã. De irmã, e acima de tudo de irmã mais velha. Minha mãe ajudou a criá-lo, fazia tudo por ele, até mesmo evitar uma surra quando fazia algo errado. Por mais exagerado que ele seja, eu admito, adoro. Adoro que ele tome cerveja do amanhecer ao entardecer, que fique até às três da manhã impregnado num bom samba, num feitiço inabalável que entoa a belíssima e espetacular Maria Bethânia durante toda a noite. Minha mãe mora na casa de cima, meu tio, na casa de baixo. Há uma janela na sala que dá acesso à vista do pátio onde bebemos repetidamente. Toda vez que acendo um cigarro, mamãe grita que estou fumando, parece injustiça minha, mas as vezes é tão inofensivo que sorrio. Meu tio gargalha, bêbado acende o dele, e os amigos em volta se divertem - sabem que meu tio é o melhor homem que se possa ter por perto - e isso eu também sei. O meu tio Carlos odeio que nós, os sobrinhos, o chamemos de tio; o sujeito é muito, muitíssimo vaidoso, jura ser absurdamente lindo e faz com que lembremos que tem olhos claros - “meus olhos são verdes, otário” -, acho isso de uma pretensão absurdamente risonha, e as vezes repito na mesa onde estamos que eu pelo menos sou mais jovem. Ele fica mordido. Para indignar ainda mais, falo: “A benção”. Nossa, é como dizer que ele tem cem anos e parece um maracujá envelhecido. O homem é tão duvidosamente vaidoso que diz berrando sempre, que odeia que peçamos a bênção, pois segundo ele, sente-se bem mais velho. Perdão titio, mas tu é mais velho mesmo. Adoro que ele entenda o que sinto por ele, mesmo sabendo eu que ele sabe disfarçar bem que não se importa com isso, sinto-me amante de quem me faz muito bem, e isto é privilégio de quem ama. Nas noites em que nos entupimos de cerveja e churrasco, ouvimos sambas, MPB, e um cadinho de um forró gostoso, a moda antiga, como tudo que é geralmente bom. Meu tio cozinha como ninguém, xinga como ninguém, encanta como ninguém jamais encantará, põe no youtube “Naquela mesa” e canta quase chorando… eu me sinto um degustador de dor e enciumado criativamente, jogo um Los Hermanos e sofro tranquilo. Tio Carlos não sabe que escrevo sobre ele, isto é dádiva dos introspectivos e, antes que o Cris e o Everton vão-se embora ele grita embriagado: “Trás mais uma aí estupidamente gelada!”