CENSO COMPLICADO
O rapaz estava fazendo entrevista de casa em casa para um censo encomendado pela prefeitura, o qual buscava saber o percentual de negros, brancos, pardos, amarelos, entre outros tipos étnicos que formavam a população daquela cidade. Os próprios moradores informariam qual era a sua cor.
Entretanto, naquele dia a coisa não saiu conforme o esperado.
A casa era a de número 351 e ficava numa das melhores ruas da cidade. Uma casa aparentemente nova, com muros altos, com cerca elétrica em cima e com uma placa "Cuidado com o cão", bem na frente do portão principal.
— Ô de casa! – chama o entrevistador.
Ninguém responde da primeira vez. Ouve-se apenas alguns latidos do cão que toma conta da casa.
— Ô de casa! – chama mais uma vez o rapaz.
— Ô de fora! – responde finalmente uma voz feminina lá de dentro.
Depois de alguns segundos uma mulher aparece. Era a irmã da dona da casa que estava ali sozinha.
— A senhora é a dona da casa?
— Sou irmã dela.
— É que estou a serviço da prefeitura fazendo uma entrevista nessa rua sobre a cor dos moradores daqui. Não vai demorar quase nada. Serei rapidinho, eu prometo.
— Mas eles não estão aqui.
— Mas a senhora os conhece e poderá me responder.
O entrevistador fora instruído a não anotar as respostas de uma pessoa em nome de outra. Era a própria pessoa e mais ninguém quem deveria dizer qual era a sua cor. Mas ele estava fazendo aquele trabalho havia três dias e estava muito cansado. Não queria ir naquela casa de novo só para pegar as respostas de duas pessoas, que, afinal, eram conhecidas muito bem por aquela mulher, a qual poderia responder por eles tranquilamente. E assim foi feito.
— Como é teu nome completo – inicia a entrevista o rapaz.
— Meu nome é Firmina dos Santos Corrêa.
E vai fazendo algumas perguntas sobre nascimento, estado civil e escolaridade. Até que chega ao ponto central da entrevista:
— Qual a sua cor, dona Firmina?
— Eu sou é escura.
O entrevistador parou um pouco, ficou meditando na resposta da mulher e tentou não comentar, bem como fora instruído no treinamento. Mas ele não resistiu à curiosidade e perguntou?
— Escura como, dona Firmina? Não será negra, parda ou morena?
A mulher, com feições de reprovação, responde ao entrevistador:
— Olhe rapaz, você me perguntou e eu respondi. Se não acha que está certo, não escreva. Mas eu sou é escura, não tenho nada de parda ou morena, muito menos de negra!
E de fato o entrevistador achava que ela era negra, embora com uma tonalidade não muito forte. Inclusive ele via outras evidências: seu cabelo crespo e seu nariz achatado. Mas, parando pra pensar, ele lembrou que a pergunta se referia à cor apenas, e não ao resto do corpo. Então a coisa se complicava.
Diante daquela situação o rapaz pensou duas vezes antes de prosseguir a entrevista. Se ela havia respondido daquela forma em relação à sua cor, como iria responder às perguntas sobre a cor de sua irmã e de seu cunhado?
Ele quase desistiu, mas, lembrando que teria que voltar ali, resolveu continuar.
— Sim, agora me responda: qual a cor do marido de sua irmã?
— Ele é mulato – responde ela.
Novamente o entrevistador anota a resposta contrariado e pensando consigo mesmo: "Esse cara deve ser moreno". Mas tinha de anotar o que a mulher dizia.
Dona Firmina, percebendo que o rapaz ficara engasgado com a resposta, lhe pergunta:
— Vai dizer que você não acredita em mim de novo?!
— Não, senhora, é claro que eu acredito. Minha função é apenas registrar as respostas, nada mais.
— E a cor de minha irmã é branca! – diz a mulher levantando um pouco a face e fechando os olhos, demonstrando convicção em suas palavras.
Aí o rapaz não conseguiu mesmo se segurar. Como ela podia ser "escura" e a irmã ser "branca"? A não ser que fossem de pai ou mãe diferentes, não havia outra explicação. Embora exista, ele nunca tinha visto uma família composta de brancos e negros, então lhe custava acreditar na mulher.
— A cor dela não é parecida com a tua? – pergunta o rapaz.
— Como poderá ser parecida com a minha se eu sou escura, menino? Ela é branca, eu não já disse?! – fala Firmina, já perdendo a paciência.
— Certo, me desculpe novamente.
— Você não fez curso não, antes de começar a realizar essas entrevistas?
— Fiz.
— Mas não parece. Tudo que a pessoa fala você acha que é mentira. Onde já se viu isso?!
— Não acho que é mentira, apenas faço algumas perguntas para clarear mais as idéias.
— Só se for as suas, porque as minhas já estão claras há muito tempo. Eu sou é escura e não tem pesquisa nenhuma nesse mundo que me faça dizer que sou negra. Ainda mais essa!
Naquele mesmo momento chega o casal dono da casa.
— Boa tarde – eles cumprimentam.
— Boa tarde – responde o entrevistador.
— São os donos da casa?
— Sim, somos nós. Algum problema?
— Não. É que eu estava entrevistando dona Firmina sobre a cor dos moradores dessa casa e ela já me respondeu.
— Ah, foi? E o que ela respondeu? – pergunta a dona da casa, olhando desconfiada para a ficha na mão do rapaz.
— Que você é branca e que seu marido é mulato. Vocês confirmam ou não?
O marido olha pra esposa e a esposa olha pra Firmina. Os três se olham e o rapaz observa a todos eles durante aqueles segundos cheios de confusão e desencontros de opiniões.
— Bom, eu me considero morena-clara – fala a dona da casa.
— E eu acho que sou pardo – responde o marido.
Diante daquela nova situação, o entrevistador olha para dona Firmina, que, desapontada com a irmã e o cunhado, entra para a casa fazendo gesto de desagrado com a boca. Sem saber direito como proceder, o entrevistador anulou a segunda entrevista que fizera à dona Firmina e registrou a entrevista feita diretamente ao casal.
"Mulato, moreno ou pardo?" "Branca ou morena-clara?" "Bem, acho que todos eles são é mestiços, isso sim!", pensava o rapaz caminhando para casa.