Letras da Arábia - Nenhum avião para Beirute
- Vamos ao cinema?
- Mas dizem que o cinema aqui é proibido...
Nosso amigo palestino, Mohammad, Pedro para os patrícios, fala um português não muito castiço, aprendido com os soldados do contingente brasileiro em Gaza, lá pelos idos de 1960 e uns quebrados. Ele deu a ideia, diz “malesh”, que quer dizer mais ou menos “não tem problema”, que podemos ir, sim, e nos conduz a um cinema num hotel, a trinta e cinco quilômetros de Jeddah. Vamos curiosos, por causa do filme e por causa do prédio em si.
A tela do cinema não passa de um muro branco no terreno do hotel. O teto é a noite clara, a lua cheia e algumas estrelas, desconhecidas e esparsas. Que saudade das estrelas de Pitangui e do Brumado! O filme é egípcio, colorido, e a técnica chega a surpreender. Não há letreiros e a gente entenderia quase nada se não fosse o nosso tradutor, o Pedro Mohammad, gancho humano perfeito entre a Cruz e o Crescente,
Enquanto se desenrola o drama do amor clandestino da cantora e do repórter casado e pai de um filho, tema realmente muito original, me lembro de que em Beirute se desenrola uma batalha violenta e o Líbano está à beira de uma guerra civil, se já não está a estas horas. Tema também original o da guerra, principalmente nesta parte do mundo. Mais original ainda, se nos lembrarmos de que estão usando como justificativa para a luta o nome de Deus e seus profetas. E justamente por causa do derramento de sangue em Beirute, estou proibido de voltar à cativante capital libanesa.
Mas nem por isso hei de deixar de visitá-la em pensamento. A Rua Hamra é linda e acolhedora, quando não há metralhadoras nem tanques nem soldados. Os cinemas, os cafés, o povo à ocidental, alegre e esportivo, transmite constantemente um ar de domingos e feriados. Mas onde estarão agora os sorrisos, as gentilezas, a alegria desse povo? E os olhos das libanesas, segundo os entendidos, os mais bonitos do Oriente Médio? E, segundo os desentendidos, os mais lindos do mundo? Não acredito que aquele povo possa odiar. Não acredito que Beirute seja a poça de sangue que o jornal saudita “Arab News" descreve na ediçáo de hoje. Preciso ver para crer. Mas como ver se não saem aviões para Beirute?
O que posso ver para crer é o filme egípcio neste cinema a trinta e cinco quilômetros de Jeddah, cinema que, por ser tão longe, nos deixa com a sensaçáo de estar burlando a lei e de que seremos pegos com a boca na botija. Se assim não fosse, por que não há cinemas no centro e à vista de todo mundo? Por qué?
Bom, mas isso não é problema meu. Prefiro analisar, embora laicamente, o atual estágio do cinema egípcio. Se náo há cinemas e os filmes são proibidos para o grande público, há compensações. Estão construindo na periferia da cidade o maior aeroporto do mundo. Na falta de coisa melhor para fazer, poderemos nos distrair contando aviões, assim na terra como no céu. Será supinamente interessante e instrutivo. Além disso, ajudará a matar o tempo, embora haja divergências quanto a isso: dizem que é o tempo que nos mata.
(Jeddah, Arábia Saudita, 09/1975)