Letras da Arábia - Periferia do Eldorado
Vamos receber o brasileiro que chega da terra querida, via Paris. É madrugada, mas as ruas ao redor do aeroporto apresentam ainda tráfego respeitável, quase todo constituído de pesados carros americanos, grandalhões, a maioria suja e mal-cuidada. O brasileiro, depois de passar pelo controle de passaportes, saúde e bagagem, é efusivamente recebido. Pudera, ele é como se fora o hálito da Pátria saudosa que nos acaricia o corpo e edulcora a alma.
À saída, nem bem ainda na rua, somos literalmente atropelados pela chusma que exige trabalho. Miseráveis, em andrajos, a maioria negros da África Oriental, aqui vindos pelo novo Eldorado, que de dourado mesmo nada possui, visto que a corrida aqui é por um ouro de cor diversa do normal: o petróleo.
Como dizia, somos quase atropelados e por pouco não nos arrancam as pequenas valises de mão, toda a bagagem do brasileiro, na tentativa desesperada de merecerem um ou outro rial de gorjeta. São imigrantes. O país está rico, mas a miséria ainda é bem distribuída, estando o maior quinhão em poder dos africanos, que para cá acorrem aos montes, sem qualquer qualificação profissional, no entanto.
- Sadik! Sadik! Here!
- Mister! Mister! “Bliz, bliz”!
Destravam as línguas e acabamos por nos confundir em meio a tanto falatório, só entendendo uma ou outra palavra de um inglês primitivo, semidialetal.
Depois de vencida a barreira dos carregadores, é preciso ainda se defrontar com um pequeno exército de motoristas de táxi que, gentil e delicadamente, nos tentam rebocar cada qual para o interior de seu veículo. É a mesma fuga à miséria, só que em um grau menos plebeu. E seus olhos, embora preocupados com o dinheiro que poderão arrancar dos alegres e ruidosos estrangeiros, não perdem de vista os tímidos decotes ou a saia um pouco para baixo dos joelhos que as mulheres do grupo lhes oferecem aos olhares. Acostumados aos corpos totalmente velados da "fatah" ou da "madam", aqueles poucos centímetros expostos lhes parecem uma generosidade incomensurável e as estrangeiras, só por isso, merecem o nome de "impudicas", para não reproduzir o que realmente dizem.
No caminho em direção ao veículo que nos vai levar a todos para casa, ainda há que deparar com outro espetáculo. Vencidos pelo cansaço, dormindo esparramados pelas calçadas do aeroporto, em todas as posições imagináveis, estão mais imigrantes. Não tendo para onde ir, "repousam" por aí mesmo, visto que já estarão na "repartição" pela manhã, quando começar nova luta por bagagens e pequenos favores aos viajantes. São homens de todas as idades, velhos em tempo de aposentadoria e crianças de jardim de infância, tendo em comum apenas a sujeira das roupas rasgadas e o mesmo "emprego".
No entanto, quando fixamos seus rostos e olhos fechados, poder-se-ia jurar que estão tranquilos. Sob as frias luzes de mercúrio e as promessas luminosas de riqueza e prazer, estarão, talvez, sonhando com um lar distante. Estarão, quem sabe, sonhando com um tempo já perdido no passado, quando os ancestrais lutavam com leões ferozes em florestas virgens, de rios caudalosos e regatos cristalinos, onde, um dia, morou a Felicidade.
(Jeddah, Arábia Saudita, 30/07/75)