Letras da Arábia - Um mineiro desafia o Deserto
Enfim, aqui estamos. Há mais ou menos quinze mil quilômetros daqui até o Beco dos Canudos. Sei que não seria racional andar a pé daqui até lá, eu poderia me cansar. Entendendo isso, começo a sentir a distância em cada poro do corpo. Se eu tiver vontade de ir ao Velho da Taipa a pé para nadar no Areão, não vou poder. Se quiser ir ao Brumado sem pegar condução, também não vai dar. É, realmente estou longe. Mesmo aquelas caminhadas para meditação, as sandálias e a barra das calças sujas, o corpo suado, tudo isso tem que acabar. Pelo menos por enquanto.
Então, subo a escada em caracol ao terraço da nova casa... É verdade mesmo, os olhos não mentem: lá, bem logo ali, começa o deserto. O deserto das minhas figurinhas, o deserto das nossas brincadeiras, do faz-de-conta, logo ali está. Isto é, logo ali, se não considerarmos que todo este bairro de Jeddah já não configura um atentado ao deserto. O que, na verdade, o referido bairro é.
Porque toda árvore e só areia. Porque toda pedra é só areia. Porque todo lodo é só areia. Porque toda água... Bem, não exageremos. Há água e muita! Só que é do mar. Mar Vermelho, meu Deus, estou a poucos passos do lugar onde Moisés domou as águas! Será ali? Será acolá? Onde será?
Mas não afastemos as águas agora, voltemos a e1as. Existe água sim, mas é dessalinizada. E inclusive é encanada. E temos muita. Este é um conforto que os beduínos de até há pouco não dispunham. Mas água para beber, que não agride os organismos dos estrangeiros, só mesmo a água mineral, trazida do Líbano. Apesar da dessalinização, o sal consegue vir na água local, embora em quantidades mínimas, o suficiente para causar diarreias nos recém-chegados.
Quinze mil quilômetros do Beco dos Canudos! Abraços pro Tarcisão, pro Rey, pro Tusta, pro Tõe Carlos, Salzinho, Pavão & Brothers, pra toda aquela gente de lá e pra Pitangui inteirinha. Quinze mil quilômetros é uma boa quantidade de metros. A esta distância de casa e a quanto tempo de um domingo? Sim, porque aqui não há domingo. 0 dia santo dos muçulmanos é a sexta-feira. Sábado e domingo a gente nem vê passar. O que não acontece com o calor, que passa da conta. Quarenta graus agora, mas o verão ainda não veio pra valer. Belo lugar pra Dante se inspirar a fim de descrever determinada parte da Divina Comédia. Adivinhem qual.
E os estrangeiros? A cidade é sede das missões diplomáticas e, para completar, pertinho de Mecca, a cidade santa do Islam. Os estrangeiros pululam por aqui. Imigrantes da África Negra ou de outros países árabes e funcionários de governos estrangeiros.
E aqui eu. A quinze mil quilômetros do Beco dos Canudos. Estranhos são os desígnios do Senhor! Ou de Allah, para ser mais preciso. Abrações monumentais a todos.
(Jeddah,Arábia,Saudita,19/06/75)