Mas você gosta de um tatu, heim!!!
Antôim da Foice era um desses sertanejos do que o sertão do antigo Mato Grosso pode dizer que tinha a verdadeira cara do novo espaço que estava sendo conquistado. O nome é um tanto sugestivo porque sempre estava com uma foice nas costas, sempre com uns galhos de guajuvira, madeira utilizada para fazer cabos de enxadas, rodos, cavadeiras, pás etc., suas ferramentas eram invejáveis, tinha um zelo doentio por elas, não as deixava nas mãos de ninguém para limar ou capinar. Nos pés sempre trazia um par de botas sete léguas – com o frio de julho ou o calor escaldante de janeiro – calças de tergal, camisa de algodão cru, chapéu de palha, na cintura sempre um facão dependurado, duas virtudes: não fumava nem bebia; tinha uma saúde de ferro. Ah! Foi por um bom tempo um grande caçador. Aliás, quase não comia carne bovina, apenas galinha, porco, semente-de-galinha – era assim que chamava os ovos – do contrário era comer caça e pesca, dizia que tinha sangue de índio.
Como bom sertanejo sempre trazia uns dentes de alho no bolso da camisa, segundo ele, era para agradar a caipora. Não fumava, mas sempre comprava fumo em corda e sempre levava para a roça uns pequenos pedaços que ele depositava nas cabeças dos tocos, acreditando também que era um meio de agradar o saci-pererê. Sempre que ia pescar, pedia licença para a mãe d’água para fazê-lo e ainda devolvia alguns peixes na água para agradar a tal mulherzinha.
Os hábitos que seu Antôim da Foice adquiriu foi por causa de uma visagem que lhe apareceu em uma noite de caçada. Ficou uns dois meses mudo e só depois contou a história que poucos são os que não acreditam, a maioria dos homens ali têm a mesma opinião de Seu Antônio. A história é dessas de arrepiar para quem acredita em lendas e risível para os incrédulos. O nosso protagonista não costumava contar a história para qualquer um, pois não tolerava deboches.
Juca, um menino muito curioso quanto às histórias das pessoas que lhe rodeavam, foi à casa de Seu Antôim da Foice e pediu insistentemente para que lhe contasse o que lhe ocorrera. Como gostava muito de criança, resolveu contar a sua história:
— Dispois di uns par de dia comendo só semente-de-galinha, qui num guentava mais, numa tarde dispois de uma chuva eu sabia que os bichos iam saí das tocas pra fuçá as roças. Chamei uns cumpanheros pra caçá tatu. Todos disseram que num iam não. Qui a caipora andava margeando as matas, sortando um assubiu fininho. Cuma nessas eras eu num creditava nessas coisa – que hoje eu credito – arresorvi i sozinho. Dois cachorros dus bãos i uma ispingarda cartuchera, além di um enxadão, caso o bicho entocaiassi. Andei uns duzentos metros i uma curuja roçou minha cabeça, parecendo dizer qui arguma coisa di ruim tava pra acontecê, mas eu sem assuntá nada da vida continuei, com meu candiero. Num demoró muito i os cachorros começaram a lati desesperadamente, quando comecei a corrê rumo dos latidos, de repente os latidos já não estava na minha frente i sim nas minhas costas, corria em direção aos latidos de novo e os latidos já estava pra rumo diferente i mi vei uns arripiu, lembrei do que uns amigos meus contava, que em uma caçada, quando os cachorro corre em círculo é pruquê a caipora tá querendo pegá eles. Mais criei corage i continuei correndo, agora os latidos tava mais perto, mais perto, mais perto... i cheguei no lugá onde tava os bichos, cavando desesperadamente como si ali tivesse argum tatu. Meti-lo o inxadão muito rápido, quando avistei o cabo do bicho ele conseguiu escapá por entre as minhas perna i os cachorros enrabicharam atrás dele e eu também. Entró em uma outra toca i eu e os cachorro começamo a cavá, onde aconteceu a mesma coisa. Eu não sei em quantos buraco o bicho entró i escapô, eu só sei que lá por umas tantas horas, na beira de mais um buraco, eu cavando desesperadamente, a lua tava muito clara i eu ainda com o candiero, não posso ter ouvido outra coisa, eu juro, o tatu saiu do buraco, quando eu ia pegá, o tatu olhó pra mim com a mãozinha espalmada para frente e disse ofegante com uma voz rouca:
— Pare!!! Colocou as duas patinha diantera na cintura e continuó. — Dá licença!!!!! Mas você gosta de um tatu, heim??!!!
Não vi mais nada. Mi deu um passamento e ali eu fiquei. Só me encontraram no outro dia, perdido no meio da roça, morrendo de sede e fome, pois já era umas quatro horas da tarde. Dasdô, minha muié ficou preocupada pruquê eu num chegava i pidiu pru cumpade Domingo e se João Canjarana mi procurarem.
Fiquei dois meis mudo, assustado, sem trabaiá, num quiria ir pra roça nem que me pagasse, tinha medo de encontrá com outro tatu daquele.
Seu Antônio levantou de seu tamborete e saiu para o terreiro da casa como quem olha para o horizonte, meio aturdido, como se o fato ainda fizesse efeito sobre a sua vida.
Juca o acompanha com os olhos e quando Seu Antônio pára no meio do terreiro ele – Juca – vai até a Dasdô que estava colocando um bolo de milho no forno à lenha e pergunta:
— Seu Antônio voltou a caçar, Dona Dasdô?
— Não, meu fio. Ele penduró a cartuchera naquele canto, tem até teia de aranha. Os cachorro vão morrê de véio, onde de veis em quando late prus calango ou algum gato do mato que vem querê pegá galinha aqui, mais Tôim num sai mais de casa a num sê acumpanhada d’eu. O home amufinó.
— O que é “amufinó”, Dona Dasdô? Pergunta infantilmente Juca.
— Tôim era um home corajoso, inté casei cum ele pru causa da sua coraje. Entonces “amufinó” significa qui num tem mais aquela coraje de quando nóis casamo.
Juca deixa Seu Antônio ainda no quintal olhando para o horizonte, pega um pedaço de bolo quentinho, recém saído do forno oferecido por Dona Dasdô, agradece e sai para ir embora. Para chegar em sua casa tem que passar por uma trilha no meio de uma pequena mata. Leva um susto medonho quando ouve um assobiar finíssimo, pensou logo na caipora, mas, mesmo assustado olhou para a copada de um jequitibá e viu um belíssimo azulão que soltou outro longo assobio. Juca riu aliviado e saiu tentando imitar o azulão.