Letras da Arábia - Os deuses se desdisseram
Doce é estar na prisão e não ver grades. Cômodo é ter o bilhete de ida e volta num porto onde não chegam mais navios. Ideal é ter os pincéis, a tinta e a ideia, mas jamais encontrar as telas no mercado. Fascinante é poder partir, saber que não se quer ficar, mas já não haver país nem pais nem casa prá retorno.
A cada dia, menos flores na árvore dos gênios. A cada hora, menos santos nos altares. A cada instante, em compensação, maís solitário e assustado pela responsabilidade de comandar sozinho a caravela em mares tormentosos qual nicho de tempestades, sem bússolas ou opinião ou exemplos de heróis.
Porque os heróis morreram.
Os gênios se afogaram.
Os deuses se desdisseram.
E não é fácil estar, de novo, no começo de tudo, a cada momento. Não ter rotas nem caminhos conhecidos, situado num areal imenso onde as caravanas não passaram e não há rastros sobre o solo, estar sempre o principiante, o aluno novato, o que não sabe. Estar sempre a cobaia na proveta de cada segundo, porque já não se tem nem gênios nem santos nem heróis.
Mas é preferível isso a adorar bezerros de ouro. A aplaudir heróis de papel-moeda. A ouvir gênios de cabeça-de-vento.
Porque os heróis morreram.
Os gênios se afogaram.
Os deuses se desdisseram.
(Jeddah, Arábia Saudita, 17/07/75)