As Três Fronteiras - Depois da tormenta, ainda estou vivo

O dia 14 de setembro, uma sexta-feira, amanheceu frio e úmido. Quando saí para o trabalho, parecia que a Natureza tinha resolvido atuar para ajudar a esfriar os ânimos aqui por Ciudad del Este. Bom para quem enfrentou uma semana de sobressaltos contínuos, em nível local e internacional.

Na verdade, a série de acontecimentos negativos tinha começado com o susto da terça-feira anterior, dia 5 de setembro. Naquele dia, tinha sido convidado para um jantar em homenagem a uns colegas transferidos de volta a Brasília. O jantar seria num restaurante de luxo num condomínio fechado em Hernandárias, cidade vizinha a Ciudad del Este. Ao chegar ao local, às 7 e pouquinho da noite, recebo a notícia de que um colega do Consulado, também convidado, que se dirigia do centro da cidade para o restaurante, havia sido baleado à entrada do condomínio. Tentaram roubar-lhe o carro, ele resistiu, atiraram seis vezes, por sorte apenas um tiro acertou-lhe a coxa, perto do joelho. Já está bem, mas naquela noite a festa acabou-se.

Na segunda-feira, começam os distúrbios em Ciudad del Este. Fecharam a fronteira para veículos do lado paraguaio. Como preciso ir a Foz do Iguaçu, deixo o carro no estacionamento do Consulado, cruzo a Ponte da Amizade a pé, à tarde, depois do trabalho. No dia seguinte, pela manhã, quando penso em voltar ao lado paraguaio, nem a pé se pode cruzar a fronteira: os manifestantes não deixam. Querem forçar uma decisão das autoridades locais. Fechar a Ponte é uma arma poderosíssima. Paralisam o Paraguai. Uma das reivindicações é a imediata interrupção das obras de reforma da Ponte, iniciadas no dia 10.

Os manifestantes querem que sejam feitas em janeiro para não prejudicar o comércio de fim-de-ano. As reformas obrigam à interdição de uma das pistas da Ponte por semanas, quem sabe meses, o que ocasionaria um engarrafamento maior do que o já conhecido. Afastaria, sem dúvida, grande parte dos eventuais compristas.

Na terça-feira, preso em Foz, vejo pela tv o pavoroso ataque terrorista a Nova Iorque e Washington. Parecia brincadeira, uma versão em vídeo da Guerra dos Mundos, que Orson Welles transmitiu pelo rádio para todos os Estados Unidos e assustou toda a população. A qualquer momento, podia-se ouvir — ou ver — que tudo não passava de uma brincadeira. Haveria, seguramente, como naquela época, um desmentido, um pedido formal de desculpas. Ou estaríamos todos tendo um pesadelo coletivo, motivado por tanta violência na tv e no cinema? Mas não. Era verdade. E sem Indiana Jones, John Wayne ou Arnold Scharznegger para salvar os bons, nem Super-Homem para deter os aviões suicidas.

Na quarta, ainda atordoado pelos acontecimentos nos Estados Unidos, vejo pela televisão a violência em Ciudad del Este. Polícia contra manifestantes. A Polícia Nacional do Paraguai, com seus esquadrões antimotins, consegue desimpedir a Ponte da Amizade. O movimento na Ponte recomeça tímido, porém recomeça. Penso: amanhã tudo volta ao normal, volto a trabalhar. Na quinta-feira, crente que tudo estava resolvido, tenho a surpresa de encontrar tensão na fronteira novamente e fico sabendo que, depois dos incidentes da tarde, houve relativa calmaria, por algumas horas no entardecer e novos confrontos, violentos, que se prolongaram pela noite adentro, com mortes, inclusive. Feio mundo, vasto mundo, pensei.

Me lembro que, na cabeceira da Ponte, no lado brasileiro, conversando com policiais federais para sondar a situação, ainda olhei para o Rio Paraná, a ilha Acaray, e pensei que cada vez mais estamos afastados da Natureza. Eles, o rio e a ilha, impávidos, seguindo seu destino, indiferentes ao nosso, e nós, ali, em lutas sangrentas, em todos os lados do mundo.

Na quinta-feira, só aí pelo meio-dia, consegui atravessar, a pé ainda, com medo, desconfiado, a Ponte, a aduana e a conturbada região da "muvuca", em plena Ciudad del Este, até chegar ao Consulado. A situação ainda estava tensa, o comércio de portas fechadas, e as diferenças só se resolveram aí pelas três da tarde, quando um acordo foi celebrado entre Governo e manifestantes.

Por isso que, na sexta-feira, o friozinho e a chuva vieram a calhar. Respirei aliviado. Não que o mundo tivesse melhorado, mas já dava, pelo menos, para encher os pulmões, admirar o verde, ouvir os passarinhos e dizer: que bom, ainda estou vivo.

(Ciudad del Este, 16 de setembro de 2001)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 20/02/2019
Reeditado em 22/02/2019
Código do texto: T6579789
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