Mas quando voltarei para casa, pergunto

Estou aqui. Deveria ir dormir mais cedo, é o mais sensato. Mas, neste instante, sou o Artista, o Predestinado. Aquele que romperá as correntes. Mas onde estão as correntes?

O cinema. O jardim. Um lugar pra voltar no meio das montanhas, lá no Brasil. Correr o mundo? Eu tinha de tentar. Mas já passou o desafio. Agora é deixar correr o tempo. “Laisser passer le temps”, a música de hoje, ao acaso, no aparelho de som do quarto de hotel. A dor ao ouvir as músicas na escuridão é a mesma, seja hoje, ontem, amanhã, aqui, ali ou acolá.

E ela? E elas? Onde andarão? Meus sonhos perdidos, “mes pigeons disparus”, minhas mãos vazias, meu coração deserto... O que tenho a dar? E o que adianta me lamentar? Seria preciso refundir tudo e tudo recomeçar. Mas vale recomeçar? Será que se recomeça alguma vez? Alguma coisa?

Devia ser artista. Já falei milhões de vezes e cada vez é uma derrota, porque não sou.

Não passo de um pobre sentimental, a querer voltar para o útero materno. Mas que direito tenho de julgar alguém, mesmo que esse alguém seja eu mesmo? E o que me assegura que é um julgamento correto, justo? Para que julgar?

Há o amor. Há a fama. Há a glória. Há o sonho. Mas sempre há um lugar para a solidão e o desespero. Principalmente para os que vivem em círculos como eu, indo e vindo, mas volto sempre a este estado lamentatório.

As músicas na madrugada. As viagens. Os países do Oriente. Os palestinos. Os Kataeb. O Líbano. Tudo isso e mais o inglês, o francês, a música brasileira no Coral Beach, the Tahitian dancing girls, tudo, tudo... Eu sonhei com tudo isso. E realizei.

Por que teimar assim e querer saber? Querer que me satisfaçam? Lembra-te, amigo, quando tiveres pressa,da água paciente de Jita Cave, construindo vagarosamente as suas agulhas de cal e pedra no desfiar dos séculos. Ela não pede explicação a ninguém. Ela faz. E nada a detém.

Sim, sim, mas quando voltarei para casa, pergunto.

(Beirute, Líbano, 22/06/1975)

(Nota: Escrito num envelope da Commodore Pharmacy, situada na Baalbeck Street, Tel 352014, Beirut, que oferecia “Pharmaceuticals, Aby Food Cosmetics, perfumes e home delivery")