Inventores do sertão
1. É sertanejo legítimo quem nasce e se cria no sertão. Pode, por conseguinte, escrever sobre ele com precisão e desenvoltura.Um Patativa do Assaré e uma Rachel de Queiroz, por exemplo.
2. Mas há quem escreva, e muito bem, sobre o sertão sem do sertão conhecer, sequer, um tiquinho, como se diz lá no meu Ceará. Guimarães Rosa, por exemplo, com o seu formidável romance "Grande sertão: Veredas".
3. Queria, aqui, mais uma vez, me declarar admirador fiel do jornalista e escritor Ruy Castro. Alguns de seus livros - "A noite do meu bem", "Saudades do século 20", "A onda que se ergueu no mar", "Ela é carioca" e as biografias de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carnem Miranda - estão na minha estante das melhores obras.
4. Também ligadissimo em suas crônicas, não perco e até recorto as que ele publica na "Folha de São Paulo" sempre abordando assuntos atraentes e atuais. São crônicas pequenas, mas eloquentes. Elas dizem, com lirismo, franqueza, humor saudável e sutil ironia o que o jornalista pretende transmitir aos seus milhares de leitores em todo o Brasil.
5. Pois bem, numa crônica publicada recentemente na "Folha", intitulada "O sertão da invenção", Ruy tece oportunos comentários sobre "Grande sertão: Veredas". O livro é encantador, frisa Castro, para afirmar em seguida que Rosa escreveu bonito sobre o sertão, mas, o sertão ele conhecia muito pouco.
6. Vamos ver o que disse o ilustre cronista: "Pelo que se sabe, seu contato (...de Rosa) com o sertão se limitou a uma viagem de duas semanas, de mula, acompanhando uma tropa pela região onde a trama se passaria".
Muito pouco, de fato, para ajudar o romancista no belo livro que escreveu.
7. Prossegue Ruy: "Mas a verdade é que o sertão estava mais longe de Guimarães Rosa quando ele nasceu, em Cordisburgo, MG, em 1908, do que a praia de Copacabana. Aliás, Cordisburgo, a apenas 1h30 de Belo Horizonte, fica a 710 metros de altitude - mais antissertão, impossível".
8. Em outro tópico de sua crônica, segue Castro: "O sertão de Rosa nunca existiu . Saiu gloriosamente de sua imaginação... Para mim, é tudo invenção do urbaníssimo, erudito e cosmopolita Guimarães Rosa". E conclui: "O artista não precisa copiar. Vide Dorival Caymmi. O poeta do mar e dos pescadores não sabia nadar. E nunca pescou na vida".
9. Josué Montello (1917-2006), um dos meus escritores queridos, no seu "Diário do Entardecer", no seu estilo escorreito e elegante, conta uma história que, a meu ver, se encaixa perfeitamente no que Ruy Castro quis dizer na sua crônica "O sertão da invenção".
10. A história, narrada por Montello, envolve o velho Afonso Arinos (1868-1916), tio do político Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), autor da Lei contra a discriminação racial, e o poeta maranhense Catulo da Paixão Cearense, compositor, em parceria com João Pernambucano, da linda modinha "Luar do sertão".
11. Vamos à história. O velho Afonso Arinos, que amava "a versalhada do Catulo", possuía uma fazenda em Mogiguassu, no sertão de Minas.
"A mata densa e primitiva - diz Montello - dominada pela fazenda, era atravessada à noite, pelo uivo das onças, o que lhe dava o sabor mais vivo do sertão autêntico".
12. Arinos resolveu levar Catulo à sua fazenda. E prossegue Montello na sua narrativa: "E como a noite era de lua, a lua não tardou a aparecer. Mas, ao despontar por cima da mata "clareando a escuridão", despertou as onças, que se puseram a urrar... Catulo, coitado, passou a noite de olhos abertos, numa aflição terrivel".
13. Continua o autor de o "Diário do Entardecer": - "E na primeira luz da manhã, pôs o violão no ombro, enquanto Afonso Arinos, ao vê-lo de pé, com ar tresnoitado e rosto picado de mosquitos, lhe perguntava: 'Que é isso, poeta, não está gostando?'
- E Catulo, alarmado: - Seu Afonso Arinos, vou ser franco com você. Estou voltando. Agora. Isso não é ambiente para mim. E arrematou Catulo: "Sertão na poesia, vá lá. Ao vivo, não. Para mim chega. Ponto final".
14. Depois dessa eu pergunto: Como pode, amigo, ter saído do menestrel Catulo tantos versos e tantas músicas, maravilhosos, cantando o sertão nordestino!
15. Poemas musicados, como o conhecido "Luar do sertão", onde ele declara: "Não há, ó gente,/oh, não,luar,/como esse do sertão".
E em outro momento, na mesma canção, ainda cantando o luar, verseja: "Enquanto a onça/lá na verde capoeira,/ leva uma hora/inteira,/vendo a lua,/a meditar!"
16. Como velho sertanejo, lá dos cafundós do Ceará, morando há tempos na cidade grande, tenho o mesmo desejo de Catulo - que pouco teria conhecido o sertão - quando ele diz: "Ai!... quem me dera/que eu morresse lá na serra,/abraçado à minha terra/e dormindo de uma vez!/Ser enterrado/numa grota pequenina,/ onde à tarde, a sururina/chora a sua viuvez!".
Uma pergunta final: Catulo estará entre os inventores do sertão? Parece.
1. É sertanejo legítimo quem nasce e se cria no sertão. Pode, por conseguinte, escrever sobre ele com precisão e desenvoltura.Um Patativa do Assaré e uma Rachel de Queiroz, por exemplo.
2. Mas há quem escreva, e muito bem, sobre o sertão sem do sertão conhecer, sequer, um tiquinho, como se diz lá no meu Ceará. Guimarães Rosa, por exemplo, com o seu formidável romance "Grande sertão: Veredas".
3. Queria, aqui, mais uma vez, me declarar admirador fiel do jornalista e escritor Ruy Castro. Alguns de seus livros - "A noite do meu bem", "Saudades do século 20", "A onda que se ergueu no mar", "Ela é carioca" e as biografias de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carnem Miranda - estão na minha estante das melhores obras.
4. Também ligadissimo em suas crônicas, não perco e até recorto as que ele publica na "Folha de São Paulo" sempre abordando assuntos atraentes e atuais. São crônicas pequenas, mas eloquentes. Elas dizem, com lirismo, franqueza, humor saudável e sutil ironia o que o jornalista pretende transmitir aos seus milhares de leitores em todo o Brasil.
5. Pois bem, numa crônica publicada recentemente na "Folha", intitulada "O sertão da invenção", Ruy tece oportunos comentários sobre "Grande sertão: Veredas". O livro é encantador, frisa Castro, para afirmar em seguida que Rosa escreveu bonito sobre o sertão, mas, o sertão ele conhecia muito pouco.
6. Vamos ver o que disse o ilustre cronista: "Pelo que se sabe, seu contato (...de Rosa) com o sertão se limitou a uma viagem de duas semanas, de mula, acompanhando uma tropa pela região onde a trama se passaria".
Muito pouco, de fato, para ajudar o romancista no belo livro que escreveu.
7. Prossegue Ruy: "Mas a verdade é que o sertão estava mais longe de Guimarães Rosa quando ele nasceu, em Cordisburgo, MG, em 1908, do que a praia de Copacabana. Aliás, Cordisburgo, a apenas 1h30 de Belo Horizonte, fica a 710 metros de altitude - mais antissertão, impossível".
8. Em outro tópico de sua crônica, segue Castro: "O sertão de Rosa nunca existiu . Saiu gloriosamente de sua imaginação... Para mim, é tudo invenção do urbaníssimo, erudito e cosmopolita Guimarães Rosa". E conclui: "O artista não precisa copiar. Vide Dorival Caymmi. O poeta do mar e dos pescadores não sabia nadar. E nunca pescou na vida".
9. Josué Montello (1917-2006), um dos meus escritores queridos, no seu "Diário do Entardecer", no seu estilo escorreito e elegante, conta uma história que, a meu ver, se encaixa perfeitamente no que Ruy Castro quis dizer na sua crônica "O sertão da invenção".
10. A história, narrada por Montello, envolve o velho Afonso Arinos (1868-1916), tio do político Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), autor da Lei contra a discriminação racial, e o poeta maranhense Catulo da Paixão Cearense, compositor, em parceria com João Pernambucano, da linda modinha "Luar do sertão".
11. Vamos à história. O velho Afonso Arinos, que amava "a versalhada do Catulo", possuía uma fazenda em Mogiguassu, no sertão de Minas.
"A mata densa e primitiva - diz Montello - dominada pela fazenda, era atravessada à noite, pelo uivo das onças, o que lhe dava o sabor mais vivo do sertão autêntico".
12. Arinos resolveu levar Catulo à sua fazenda. E prossegue Montello na sua narrativa: "E como a noite era de lua, a lua não tardou a aparecer. Mas, ao despontar por cima da mata "clareando a escuridão", despertou as onças, que se puseram a urrar... Catulo, coitado, passou a noite de olhos abertos, numa aflição terrivel".
13. Continua o autor de o "Diário do Entardecer": - "E na primeira luz da manhã, pôs o violão no ombro, enquanto Afonso Arinos, ao vê-lo de pé, com ar tresnoitado e rosto picado de mosquitos, lhe perguntava: 'Que é isso, poeta, não está gostando?'
- E Catulo, alarmado: - Seu Afonso Arinos, vou ser franco com você. Estou voltando. Agora. Isso não é ambiente para mim. E arrematou Catulo: "Sertão na poesia, vá lá. Ao vivo, não. Para mim chega. Ponto final".
14. Depois dessa eu pergunto: Como pode, amigo, ter saído do menestrel Catulo tantos versos e tantas músicas, maravilhosos, cantando o sertão nordestino!
15. Poemas musicados, como o conhecido "Luar do sertão", onde ele declara: "Não há, ó gente,/oh, não,luar,/como esse do sertão".
E em outro momento, na mesma canção, ainda cantando o luar, verseja: "Enquanto a onça/lá na verde capoeira,/ leva uma hora/inteira,/vendo a lua,/a meditar!"
16. Como velho sertanejo, lá dos cafundós do Ceará, morando há tempos na cidade grande, tenho o mesmo desejo de Catulo - que pouco teria conhecido o sertão - quando ele diz: "Ai!... quem me dera/que eu morresse lá na serra,/abraçado à minha terra/e dormindo de uma vez!/Ser enterrado/numa grota pequenina,/ onde à tarde, a sururina/chora a sua viuvez!".
Uma pergunta final: Catulo estará entre os inventores do sertão? Parece.