RASGOS DISFARÇADOS

Felicidade é sirene que dispara do nada. Estica o pescoço e berra ao mundo que está lá, pronta pra tudo. Viva! Tem poucos pertences, sabe muito pouco da minha vida, mas é recheada de gostos estupendos. Quem se unta nela, deflagra os quilates mais preciosos que podem aconchegar. Quando nos alcança e nos retem arrebatando sonhos e gostos, é suprema. Uma libélula alucinada, esfomeada, triunfal. A felicidade esconde nos seus bolsos mil querelas de paixões mal passadas, desprezos de passos escusos, cordas de salvação de trejeitos puídos e absortos. Felicidade não perdoa, não endossa, não esvai. Ela flerta com os ferrolhos do querer-bem com desenvoltura das fadas, estrebuchando o tempo na sua mais tenra canção. Da minha felicidade escorrem os guizos perenes da fé, talvez até alguns decantados voos da desilusão, vai saber. Minhas felicidades são altruístas, donas do saber e da dor. Espero por elas toda vida e, vez por outra. nossos caminhos se benzem num chuvisco manco de verão. Tem vezes em que a carrego embaixo do braço, meio fugido, meio assustado, como se não quisesse que ninguém nos visse. Lembro quando fomos adotados pelo dono do vento, numa deslavada canção de ninar. Daí nos deleitamos, nus, num repente agreste que poderia bem ser a derradeira garfada naquele algoz sombrio que chamo de Deus. Mas que nada. Nós dois, a felicidade e eu, nos atracamos esbeltos, de cabeça vazia, num espirro rosnado do amor. Seguimos num chão úmido, ensanguentado e cabisbaixo, de torpor maior. Vamos nos despedindo daqueles que nos avistaram, meio embebidos de saudade, mas livres. Uma liberdade obtusa, honesta, amiga. Daí, por fim, me recolho ao baú das travessuras, moleque como sempre fui, e deixo o tempo escorrer pelos vão encardidos da minha razão. Afinal, fui capaz, finalmente, de segurar as rédeas do meu dia, assumindo cada estalo desgarrado da minha voz, do meu cheiro, do meu todo. Agora posso dormir, esquecendo meus esquisitos, meus adornos puídos, meus rasgos disfarçados. Agora posso, finalmente, ser eu mesmo, como todos temperos, grunhidos e cicatrizes que meu show fez brilhar. Minha hora, ainda bem, chegou. Viva!

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 01/02/2019
Código do texto: T6564694
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