"Cão da madrugada"

 

Minha edição de Cão da madrugada — coletânea de vinte e nove crônicas de Eneida (1904-1971) publicada em 1954 pela antiga Livraria José Olympio Editora — começa na página 19, perdidos os dois primeiros textos, e apanhou tanta chuva e tanto sol no último meio século, que há pouco mais de um mês ocupava a estante JÁ VAI TARDE no sebo do nosso Joãozinho Traça, em Marechal Hermes. Comprei imediatamente o volume e, num gesto de desagravo, criei em minha própria casa a estante QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU para receber a danificada brochura dessa mulher extraordinária.

De fato, a escritora e jornalista paraense-carioca Eneida foi uma lutadora. Quando adoeceu gravemente, em 1966, costumava dizer: "Doença é tão chato quanto cadeia." Só avalia de maneira adequada a força da comparação quem sabe que a deliciosa cronista não parou de ir em cana, por causa de suas idéias políticas, entre 1930 e 1945. Numa dessas vezes, em 1935, foi mandada para a Casa de Correção do Rio de Janeiro, onde se achava Graciliano Ramos. Este não só ficou impressionado com "aquela mulher de voz forte e poderosa", como levou-a também para dentro das páginas de Memórias do cárcere. Vale a pena conferir.

Nos anos mais violentos da Era Vargas declarava-se, com desassombro, "socialista, materialista e atéia". Mas, como a cronista abençoada que era, confessava a religião da gente comum, das coisas do dia-a-dia, dos banhos de cheiro, e sobretudo do carnaval, tendo sido duas vezes enredo da Acadêmicos do Salgueiro (campeã em 1965 com História do carnaval carioca — Eneida, e terceiro lugar em 1973 com Eneida, amor e fantasia). De 1951 até sua morte manteve um "encontro matinal" sagrado com os leitores do Diário de Notícias. O jornal que eu lia era outro, e perdi a ocasião de vê-la em plena atividade.

Até que me sugerissem, em 1967, a leitura de Cão da madrugada, eu só conhecia de Eneida a História do carnaval carioca (1958), assim mesmo apenas de folhear e para trabalho de escola.

Dá inveja o título. "Cão da madrugada". Tão fascinante, que eu me contentaria com a capa, se não tivesse a certeza de encontrar em suas cento e cinqüenta páginas belas lições de escritura e vida. Eneida tem a sensibilidade dos que sabem ouvir o recado da gente simples de sua terra e retransmiti-lo aos leitores com num bate-papo, ou como alguém que nos estivesse enviando uma carta essencial, compartilhando conosco experiências, sacações, visões-de-mundo e gestos de amor.

Comecem pela última crônica, "À praça", onde ela explica por que passou a assinar-se apenas Eneida, sem sobrenomes, mantendo o nome de batismo "solto, limpo, sozinho, meio desafiante". Leiam "Estão matando um homem", lição de alta dignidade política. Visitem "Da morte e da vida em azul" e deliciem-se com a "História rápida de um cão". Simples recomendações, no meio de tanta coisa boa. Quem puder, faça como eu: devore tudo.

 

[12.9.2007]