Quando Deus gargalhou
Então o silêncio reinou entre eles, tempo após tempo,
lua após lua.
Viraram estranhos um para o outro,
deixando de compartilhar seus suores, brilhos, dores.
Vez por outra seus corpos se trombavam em alguma esquina
do lar e nem assim se acenavam.
As convulsões do cotidiano os esculpiu dessa forma,
pouco a pouco, até elegerem o silêncio como moeda,
como atalho, como desculpa, como mordaça.
Desculpa para descompartilharem seus passos, sonhos,
os vários lados da alma.
Mas esse silêncio ardia, latejava, urrava tanto
que perturbava até Deus.
Lá dos seus confins Ele recebia os respingos
do silêncio daqueles dois e, por vezes,
até chorava. Chorava mesmo.
Sentia no seu coração uma tristeza que lhe fazia
franzir a testa, desconcentrar do seu serviço,
doía pra valer.
Deus, tão acostumado com as travessuras dos
homens, com as demências dos homens,
com as rebarbas dos homens,
já estava ficando cansado daquela cena
que parecia não cansar nunca.
Então o Criador resolveu agir.
Chamou um dos dois pra conversar.
Escolheu o mais rodado, aquele que, a rigor,
nunca lhe daria ouvidos, nunca sentiria o
seu cheiro, nunca apertaria sua mão.
Ninguém testemunhou o encontro do Criador
e criatura.
Nem se sabe, ao certo, quais palavras trocaram.
O que se sabe é que aquele silêncio-rocha,
silêncio-mar, silêncio-tudo,
fez suas malas e partiu. Partiu de vez.
Então os dois começaram a engatinhar
seu reencontro, passaram a sentir o gosto do outro,
deixaram de ser meros corpos estranhos
caminhando a esmo num deserto sem fim.
Foi quando foram surpreendidos por uma gargalhada.
Que não veio de nenhum canto desse chão.
Ela fez tremer cada pedaço do planeta,
sacudindo tudo e todos que parecia o juízo final.
Ninguém entendeu o que acontecia.
Só aquele mais rodado, que nunca sentiria o
cheiro de Deus, não se atemorizou.
Foi o único que soube traduzir a gargalhada divina
com todos seus acordes, com todos seus fiapos.
Com toda sua luz.